Na História há aquelas certezas tão certas que, jamais, por se querer
alterar a realidade, se consegue distorcer o que efectivamente foi ou
aconteceu.
Há muitos anos — já talvez há meio século ou próximo disso — o
historiador A. H. de Oliveira Marques escreveu, sem dar grandes explicações,
que Portugal tinha entrado na Grande Guerra motivado por fundamentos de
carácter interno e externo.
Na segunda metade dos anos 80 do século passado, no cumprimento de uma
obrigação académica, resolvi meter mãos à obra e atestar a afirmação do grande
mestre sem, todavia, lhe atribuir a importância que tinha, e fora de um
contexto exclusivamente histórico, pois que o meu objectivo era demonstrar ter
havido uma Estratégia Nacional determinante da entrada de Portugal no conflito.
A prova foi entregue em Abril ou Maio de 1990 e a defesa pública foi feita em
Janeiro de 1991.
Embora consciente da novidade, não atribuí grande importância ao facto e
assim permaneceu dez anos sem ser publicada. Só a tal me decidi quando alguém
obteve o grau de doutor em Florença com uma tese cujo tema era exactamente o
meu e que, inteligentemente, sem usar as minhas palavras, em boa parte do
conteúdo usou as minhas ideias… e, até, os meus erros! Mas esse utilizador das ideias alheias, para além
de publicar um livro que ainda agora é muito consultado por quem a estes
assuntos se dedica, teve o desplante de, na televisão e em entrevistas a
jornais e semanários, reclamar para si a originalidade da ideia e da descoberta… Mas ele sabia do meu
trabalho, pois a seu pedido, ofereci-lhe um exemplar.
Porque a entrada de Portugal na Grande Guerra se fez para acabar com um
equívoco — o da não beligerância e não neutralidade imposta pela diplomacia
britânica aos pressurosos defensores na não intervenção militar portuguesa — e
porque o meu livro tinha como fim acabar com outro equívoco — o da originalidade daquele historiador — optei por lhe dar como
título principal algo que foge aos motores de busca quando se procura
informação sobre Portugal e a Grande Guerra e, assim, o meu volume vai hoje na
segunda edição encimado com O Fim da
Ambiguidade: A Estratégia Nacional Portuguesa de 1914 a 1916. Melhor
seria tê-lo publicado com a designação que lhe atribui academicamente!
E vem tudo isto a propósito de António José Telo dizer, na tal
comunicação a que me tenho referido, que o «2.º Erro —[consiste em] Defender
que a guerra era só externa». E vai, de novo, cair na argumentação base de que
tanto gosta: «A realidade é justamente o contrário: a guerra internacional
mistura-se com a guerra civil intermitente e amplia-a.» Repare-se na ousadia,
na arrogância histórica, na omnisciência
do historiador quando acrescenta: «Do ponto de vista português estamos perante
um conflito único e inseparável […]»!
Ora vamos lá perceber vários aspectos que, parece, Telo não quer ver,
pois não me ocorre que os desconheça.
A Grande Guerra foi, como mais tarde a veio a definir o general alemão,
Erich Ludendorff, a primeira guerra total!
E isto quer dizer que o envolvimento da frente de operações se estende à
retaguarda. Aliás, este general, logo nas suas memórias, no pós-guerra, na
tradução francesa, evidencia aquilo que só António José Telo não quer ver:
«L’état d’esprit du pays commandait impérieusemente de agir. Nous avions les
meilleures chances de gagner la guerre».
Isto só não compreende quem não quer compreender que a guerra passou a
envolver toda a nação. E, sendo verdade para a Alemanha, não é menos verdade
para Portugal. Só que, entre nós, o estado de espírito do país estava avesso à
acção. Só lendo obtusamente a História de Portugal entre 1914 — até talvez
antes, pois já em 1912 Afonso Costa adivinhava o conflito — e 1918 não percebe
que a guerra foi o motor de toda a actividade nacional. A guerra e só a guerra.
Mas foi-o também nos outros Estados europeus e, ao sê-lo, retira todas as
razões a António Telo.
As invocações na época para levar Portugal à beligerância passaram pelo
perigo de perder as colónias, perder a independência, defender as pequenas
nacionalidades, etc., etc. Basta ler o número da Renascença Portuguesa dedicado
à nossa entrada na guerra! Mas tudo isso era mera propaganda, porque a razão
fundamental não podia ser anunciada aos quatro ventos: o receio das decisões
britânicas quanto a Portugal e, por isso, o desejo de gerar uma condição de
paridade soberana.
António José Telo recusa-se a ver isto, adoptando uma postura muito
semelhante à de Brito Camacho, incapaz de perceber que Afonso Costa, no seu
radicalismo revolucionário buscava
para Portugal, no plano externo, uma grandeza que, no plano interno, era
sistematicamente boicotada, por ser entendida como o exercício de uma ditadura
dos esclarecidos sobre os ignaros.
E mais! É obviamente verdadeiro que Sidónio Pais esteve, desde sempre
disposto a fazer o que Londres mandasse para satisfazer a sua vaidade pessoal
(Malheiro da Silva retrata-o melhor que ninguém!), mesmo que isso implicasse o
desaparecimento do Corpo Expedicionário Português (CEP) na B line, como foi sugerido pelo comandante do Corpo de Exército britânico,
na véspera do início da batalha de La Lys. E esta vontade militar britânica vai
dar razão ao facto de a guerra ser feita tanto em França como em Lisboa.
A ânsia de protagonismo ou a vontade política de liquidar o que de melhor
teve a 1.ª República, o que de mais genuinamente patriótico foi feito naquele
período, leva António José Telo a entrar por uma novidade que só existe na sua cabeça. Ele não vê e não compreende o
que todos os historiadores já viram e já compreenderam. E o erro que ele diz
existir, afinal não existe!
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