quarta-feira, 16 de março de 2016

O erro que não é erro


Na História há aquelas certezas tão certas que, jamais, por se querer alterar a realidade, se consegue distorcer o que efectivamente foi ou aconteceu.

Há muitos anos — já talvez há meio século ou próximo disso — o historiador A. H. de Oliveira Marques escreveu, sem dar grandes explicações, que Portugal tinha entrado na Grande Guerra motivado por fundamentos de carácter interno e externo.
Na segunda metade dos anos 80 do século passado, no cumprimento de uma obrigação académica, resolvi meter mãos à obra e atestar a afirmação do grande mestre sem, todavia, lhe atribuir a importância que tinha, e fora de um contexto exclusivamente histórico, pois que o meu objectivo era demonstrar ter havido uma Estratégia Nacional determinante da entrada de Portugal no conflito. A prova foi entregue em Abril ou Maio de 1990 e a defesa pública foi feita em Janeiro de 1991.
Embora consciente da novidade, não atribuí grande importância ao facto e assim permaneceu dez anos sem ser publicada. Só a tal me decidi quando alguém obteve o grau de doutor em Florença com uma tese cujo tema era exactamente o meu e que, inteligentemente, sem usar as minhas palavras, em boa parte do conteúdo usou as minhas ideias… e, até, os meus erros! Mas esse utilizador das ideias alheias, para além de publicar um livro que ainda agora é muito consultado por quem a estes assuntos se dedica, teve o desplante de, na televisão e em entrevistas a jornais e semanários, reclamar para si a originalidade da ideia e da descoberta… Mas ele sabia do meu trabalho, pois a seu pedido, ofereci-lhe um exemplar.
Porque a entrada de Portugal na Grande Guerra se fez para acabar com um equívoco — o da não beligerância e não neutralidade imposta pela diplomacia britânica aos pressurosos defensores na não intervenção militar portuguesa — e porque o meu livro tinha como fim acabar com outro equívoco — o da originalidade daquele historiador — optei por lhe dar como título principal algo que foge aos motores de busca quando se procura informação sobre Portugal e a Grande Guerra e, assim, o meu volume vai hoje na segunda edição encimado com O Fim da Ambiguidade: A Estratégia Nacional Portuguesa de 1914 a 1916. Melhor seria tê-lo publicado com a designação que lhe atribui academicamente!

E vem tudo isto a propósito de António José Telo dizer, na tal comunicação a que me tenho referido, que o «2.º Erro —[consiste em] Defender que a guerra era só externa». E vai, de novo, cair na argumentação base de que tanto gosta: «A realidade é justamente o contrário: a guerra internacional mistura-se com a guerra civil intermitente e amplia-a.» Repare-se na ousadia, na arrogância histórica, na omnisciência do historiador quando acrescenta: «Do ponto de vista português estamos perante um conflito único e inseparável […]»!
Ora vamos lá perceber vários aspectos que, parece, Telo não quer ver, pois não me ocorre que os desconheça.

A Grande Guerra foi, como mais tarde a veio a definir o general alemão, Erich Ludendorff, a primeira guerra total! E isto quer dizer que o envolvimento da frente de operações se estende à retaguarda. Aliás, este general, logo nas suas memórias, no pós-guerra, na tradução francesa, evidencia aquilo que só António José Telo não quer ver: «L’état d’esprit du pays commandait impérieusemente de agir. Nous avions les meilleures chances de gagner la guerre».
Isto só não compreende quem não quer compreender que a guerra passou a envolver toda a nação. E, sendo verdade para a Alemanha, não é menos verdade para Portugal. Só que, entre nós, o estado de espírito do país estava avesso à acção. Só lendo obtusamente a História de Portugal entre 1914 — até talvez antes, pois já em 1912 Afonso Costa adivinhava o conflito — e 1918 não percebe que a guerra foi o motor de toda a actividade nacional. A guerra e só a guerra. Mas foi-o também nos outros Estados europeus e, ao sê-lo, retira todas as razões a António Telo.

As invocações na época para levar Portugal à beligerância passaram pelo perigo de perder as colónias, perder a independência, defender as pequenas nacionalidades, etc., etc. Basta ler o número da Renascença Portuguesa dedicado à nossa entrada na guerra! Mas tudo isso era mera propaganda, porque a razão fundamental não podia ser anunciada aos quatro ventos: o receio das decisões britânicas quanto a Portugal e, por isso, o desejo de gerar uma condição de paridade soberana.
António José Telo recusa-se a ver isto, adoptando uma postura muito semelhante à de Brito Camacho, incapaz de perceber que Afonso Costa, no seu radicalismo revolucionário buscava para Portugal, no plano externo, uma grandeza que, no plano interno, era sistematicamente boicotada, por ser entendida como o exercício de uma ditadura dos esclarecidos sobre os ignaros.

E mais! É obviamente verdadeiro que Sidónio Pais esteve, desde sempre disposto a fazer o que Londres mandasse para satisfazer a sua vaidade pessoal (Malheiro da Silva retrata-o melhor que ninguém!), mesmo que isso implicasse o desaparecimento do Corpo Expedicionário Português (CEP) na B line, como foi sugerido pelo comandante do Corpo de Exército britânico, na véspera do início da batalha de La Lys. E esta vontade militar britânica vai dar razão ao facto de a guerra ser feita tanto em França como em Lisboa.

A ânsia de protagonismo ou a vontade política de liquidar o que de melhor teve a 1.ª República, o que de mais genuinamente patriótico foi feito naquele período, leva António José Telo a entrar por uma novidade que só existe na sua cabeça. Ele não vê e não compreende o que todos os historiadores já viram e já compreenderam. E o erro que ele diz existir, afinal não existe!

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