domingo, 31 de maio de 2015

Aliados?!


Já abordei, ainda que em voo rápido de palavras a rasgar o passado, a tentativa diplomática anglo-germânica de, em 1898, partilhar as mais importantes colónias portuguesas entre si. O fundamento encontrava justificação na necessidade de conter o crescimento da marinha de guerra alemã de forma a não rivalizar com a britânica. Salvou Portugal de ser esbulhado, não só a França, que se opôs a tal negócio, mas também, a eclosão da guerra anglo-bóer, na África do Sul.
Realmente, Lisboa havia firmado um acordo diplomático com a República do Transval, comprometendo-se a permitir que pelo porto de Lourenço Marques (hoje Maputo) fosse possível a passagem de todos os produtos de que aquele Estado carecesse, incluindo armamento. O conflito inglês com o Transval colocou Portugal numa posição incómoda e impossível de manter, pois a Alemanha apoiava o Estado bóer e, a haver a colaboração prevista no acordo, a fractura diplomática com a Inglaterra ficaria iminente com todos os riscos daí advenientes, sendo que a ocupação do sul de Moçambique por tropas britânicas poderia perfilar-se no horizonte de hipóteses a considerar por Lisboa sem, contudo, se prever que Berlim estivesse disposto a assumir mais do que apoios meramente diplomáticos, como aconteceu em relação ao Transval. Assim, o entendimento anglo-germânico de 1898, poderia servir para Londres forçar Lisboa a aceitar condições internacionais sobre Lourenço Marques que iam ao arrepio da boa convivência com o Transval. E foi isso que aconteceu!
Em troca de Londres reafirmar os termos da aliança anglo-lusa e, em especial, de oferecer a sua marinha de guerra para protecção das colónias portugueses — facto que, na prática, anulava os efeitos do entendimento anglo-germânico —, em 1899, exigiu que Lisboa desse a conhecer que Portugal colaborava com a Inglaterra, ficando neutral perante a República do Transval. Era a inversão da lógica antecedente. No plano internacional aprofundava-se a imagem de uma subordinação total do Governo português às vontades britânicas. A asa tutelar da Grã-Bretanha sobre Portugal aumentou significativamente ao ponto de reduzir o estatuto soberano à condição de Estado tutelado.
Nem por se tratar de um conflito na África austral deixou de ser entendida, na Europa, a posição de Portugal como a de mero executante dos interesses britânicos, mesmo que houvesse convergência de interesses e de vontades entre ambos. Aos olhos das grandes potências europeias — fossem militares ou económicas — Portugal era coutada onde só a Grã-Bretanha caçava. E aquilo que era sabido nas chancelarias europeias era, também, sentido pelas elites mais esclarecidas do pensamento nacional português. E este sentimento foi canalizado para um de dois caminhos: ou aceitar que, por incapacidade, a Monarquia, estando politicamente falida, teria de amarrar firmemente os seus destinos ao motor britânico, aceitando o que parecia inevitável; ou romper com o regime e aceitar a proposta, um tanto messiânica e sebastianista, dos republicanos. Deste modo, não se pode limitar somente às razões de política interna a taumatúrgica solução trazida por uma República que se tinha de proclamar tão rápido quanto fosse possível — e aqui entrava, também, a aceitação prévia da Grã-Bretanha que, no mínimo, teria de dar garantias de neutralidade se os republicanos dessem garantias de continuidade na aceitação de uma tutela que satisfazia, acima de tudo, os interesses britânicos — para, especialmente, no plano interno mostrar que as moscas mudavam, sem nada prometer quanto a outras mudanças no plano externo.

À luz de uma verticalidade de princípios políticos, que a prática de um capitalismo absorvente e expansionista ainda não havia ganhado espaço e lugar no quotidiano português, imaginados como os ideais para o governo dos povos, a relação existente entre Portugal e a Inglaterra era tida, entre o povo e as elites contestatárias, como pérfida, porque a Aliança não se mostrava pura e desinteressada. E o que ditava este sentimento era um desfasamento na identificação das armadilhas que, no século XIX, na Grã-Bretanha, se tinham aperfeiçoado através da relação íntima entre os interesses do capitalismo em expansão e os interesses políticos de um poder estatal, de há muito, com vocação imperial. Felizmente, os republicanos, ou uma grande maioria deles, — representados por uma geração de gente com idades médias compreendidas entre os quarenta e os cinquenta anos —, que depois da mudança do regime assumiram as rédeas da governação, se aperceberam da importância da manha na condução da política moderna, pois puseram em dúvida a existência de uma Aliança desinteressada, passando a ter receio evidente das jogadas da Velha Aliada. E em boa hora assim procederam, porque em Londres, no ano de 1912, deu-se inicio a novas conversações para a partilha das colónias portuguesas com a Alemanha. Isso alertou, pelo menos uma ala dos republicanos, para a necessidade de frustrar os intentos ingleses através de levar Londres a invocar a Aliança quando a guerra, há muito esperada e pressentida, estalou na Europa. Iniciava-se uma política diplomática moderna e, em certa medida, revolucionária.

sábado, 9 de maio de 2015

Compreender a Revolução


Embora seja vulgar referir os acontecimentos de 5 de Outubro de 1910, tal como os que imediatamente os antecederam e precederam por Revolução, o certo, quanto a nós, é que somente se limitaram a provocar uma mudança de regime. Claro que, se por revolução se entender isso mesmo — a mudança de regime —, estaremos, então, perante tal acontecimento, por se ter verificado a modificação das instituições monárquicas em instituições republicanas, mas se compreender que não basta mudar as instituições para que haja uma revolução, então ela, efectivamente, só aconteceu quando, através de legislação conveniente, se operaram as transformações que deram cunho republicano à sociedade. E, neste caso, a revolução deu-se em momentos diferentes, sendo que, o primeiro e mais notável, foi o Governo Provisório da República.
Foi durante a fase final do ano de 1910 e grande parte dos meses de 1911 que se cortaram as amarras à sociedade monárquica e se lançaram os alicerces do edifício republicano. Para compreender este facto e aceitá-lo como verdadeiro basta pensar no leque legislativo do Governo Provisório! Em poucos meses lançaram-se princípios que se pretendiam ver frutificar na continuidade da República, estabelecendo mudanças que definiriam um Portugal de outro tipo.

No bojo do Partido Republicano Português (PRP), todavia, cresciam sensibilidades que, dizendo-se não monárquicas, continuavam a transportar incapacidades atávicas próprias da idiossincrasia nacional, as quais tinham, necessariamente, de entrar em confronto com a ruptura republicana. Entravam porque, na essência, eram conservadoras, embora, dizendo-se republicanas. E o que era serem conservadoras? Nada mais do que acharem excessiva a ruptura republicana. Ou seja, limitarem-se a lavar a cara à Monarquia com a água e o sabão republicanos, não cortando tradições nem hábitos que se julgavam portugueses e nacionais, mas que, realmente, constituíam obstáculos ao entendimento do progresso e da mudança que, na Europa, faziam já parte do quotidiano dos povos. Era uma espécie de República à portuguesa.
O momento de clivagem entre republicanos, deixando a claro as tendências sensitivas que coexistiam dentro do PRP, correspondeu à eleição do primeiro Presidente da República. A ala conservadora, minoritária, seguiu Brito Camacho na formação do partido unionista, a ala moderada seguiu António José de Almeida quando este se separa do velho Partido Republicano para fundar o partido evolucionista; restaram, dentro do aparelho partidário republicano do tempo da Monarquia, os radicais chefiados por Afonso Costa. Este era, efectivamente, a alma da República moderna apostada na revolução. Mas os anteriormente citados chefes republicanos, ainda em 1911, haviam conseguido fazer eleger para Chefe de Estado o histórico e moderado Manuel de Arriaga.

De acordo com a doutrina expressa no Art.º 31.º da Constituição Política, o Presidente da República era o chefe do Poder Executivo, já que o exercia com os ministros (Art.º 36.º). Ora, como chefe do Poder Executivo, competia-lhe a função de convocar, para formar Governo, a personalidade que achasse mais conveniente (n.º 1.º do Art.º 47.º). Contudo, por força do disposto no Art.º 49.º, o Presidente da República era refém dos ministros, pois todos os seus actos «[…] deverão ser referendados, pelo menos, pelo ministro competente. Não o sendo, são nulos de pleno direito, não poderão ter execução e ninguém lhes deverá obediência.» Curiosamente, o Art.º 53.º estabelecia que, «[…] de entre os ministros, um deles, também nomeado pelo Presidente, será presidente do Ministério e responderá não só pelos negócios da sua pasta, mas também pelos da política geral.» Como se depreende, o Poder Executivo tinha uma bipartição de responsabilidades e de vigilâncias mútuas, acabando, em última instância por estar uma delas — o Ministério — sujeita à crítica constante do Parlamento, sendo que, indirectamente, o Poder Legislativo exercia crítica, também, sobre o Presidente da República que por ele havia sido eleito (Art.º 38.º). A Constituição evidenciava, assim, a aversão republicana ao Poder Moderador do rei, estabelecido na Carta Constitucional, mas acabava gerando condições específicas de instabilidade, como se verá de seguida.

Manuel de Arriaga, cumprindo a Constituição, ao contrário do que é norma na actualidade nacional, não estava obrigado pelos resultados eleitorais do Congresso da República (junção da Câmara de Deputados e da de Senadores) a chamar para presidir ao Ministério o líder do agrupamento político mais votado. E é deste modo que, logo de início, se instituiu a possibilidade de gerar instabilidade governativa, pois o Parlamento, desvinculado da escolha do presidente do Ministério, tinha plena liberdade para contestar a política executada, restando ao Presidente da República a obrigação de nomear outra personalidade que formasse Governo com condição de agrado junto das Câmaras. Assim se percebe que, podendo ser elemento de estabilização política, o Presidente da República, também podia ser elemento de instabilidade.

Ora, estando desfeito o PRP inicial, dividido em três blocos de sensibilidades diferentes, bastava a Manuel de Arriaga — um político tendencialmente conservador — não chamar Afonso Costa para presidir ao Gabinete para, deste modo, travar a continuidade da revolução que tinha tido início no Governo Provisório. Eis porque, só quando depois de sucessivos fracassos governativos, em 1913, aquele político foi finalmente convocado para formar Ministério — gozando, já então, de maioria parlamentar — dando-se, assim, continuidade à revolução republicana a partir da reforma fiscal, que tornou possível o primeiro superavit orçamental desde o período liberal da Monarquia e gerou as condições para se elaborar um orçamento com previsão de saldo positivo.

Foi necessário ocorrer o golpe militar de 14 de Maio de 1915 para que se estabelecesse uma evidente sintonia entre a Presidência da República — então assumida por Teófilo Braga e, depois, por Bernardino Machado — e o partido democrático, designação dada à ala republicana de Afonso Costa, para que fosse possível haver um novo período de revolução republicana, este agora, no plano da política internacional, e que redundou, na prática, na beligerância portuguesa na Grande Guerra por forma a provocar a modificação do entendimento da relação luso-britânica nas chancelarias da Europa e, até, das Américas.
O afastamento voluntário de Afonso Costa da cena política nacional, depois do episódio governativo de Sidónio Pais e de alcançada a paz, concluiu o ciclo da revolução republicana, deixando o país entregue às tendências moderadas ou conservadoras e, quando radicais, já sem a perspectiva de mudança que, aliás, era quase impossível na Europa do pós Grande Guerra.

Compreender a beligerância e a participação de Portugal na Grande Guerra tem sido um dos nossos mais imperiosos objectivos para que se perceba a última fase da revolução republicana iniciada em 1910/11 com o Governo Provisório onde pontificou Afonso Costa como grande motor da mudança de que Portugal carecia.

Não desistimos.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

A teimosia republicana


Poder-se-á colocar a seguinte pergunta, com finalidade meramente retórica: «Qual foi a razão justificativa da alteração do regime político de monárquico para republicano, em Portugal, tornando-o um dos Estados pioneiros, na Europa, neste tipo de organização política?»
A resposta não é fácil, porque exige uma análise profunda das raízes da mudança, que, provavelmente, não caberá num simples artigo sem grandes pretensões e, mais a mais, limitado à temática da beligerância portuguesa na Grande Guerra, embora esta seja fruto daquela (para nós, a mudança de regime foi determinante da beligerância, ainda que não seja historicamente possível provar o contrário).

Na viragem do século XVII para o século XVIII, em Portugal, como um pouco por toda a Europa, poder-se-iam identificar, a traços largos e correspondentes a uma generalização talvez abusiva, três grandes grupos sociais arrumados segundo critérios de fortuna, origem da fortuna e conhecimentos de cultura erudita: os totalmente desapossados de bens e de cultura; os terratenentes com títulos de nobreza e a cultura própria da sua condição; e, por fim, os comerciantes por grosso e a retalho, possuidores de terras, de capitais ou de ambos e com algum grau de cultura erudita adquirida em estabelecimentos de ensino.
Na Europa, o século XVIII foi o tempo das grandes descobertas científicas e da afirmação do saber controlado pelo experimentalismo científico. Este facto colocou em confronto dois modelos de cultura: a aristocrática, onde imperavam valores de vivência social, delimitados pela tradição religiosa, e pouco mais, e a burguesa, onde cabiam os novos conhecimentos científicos e, acima de tudo, a nova abertura à compreensão do mundo, tentando romper com as peias de uma prática religiosa, que tolhiam a análise das grandes questões da vida e, consequentemente, a colocação da dúvida sobre a orientação política determinada pelo absolutismo monárquico e o império da aristocracia. A Revolução Francesa, em 1789, foi a expressão máxima deste confronto, sobrepondo-se a modernidade à tradição aristocrática. Depois das contradições imperiais napoleónicas e monárquicas que se lhe seguiram, onde se miscigenaram os princípios da cultura aristocrática e os da cultura burguesa numa evidente afirmação dialéctica que buscava a síntese apropriada, a proclamação da República em França veio dar corpo e sentido ao novo regime numa Europa que, necessariamente, não podia reflectir o regime republicano já existente nas Américas. Os fenómenos republicanos no Velho e no Novo Mundo, tendo a mesma matriz de repulsa monárquica e aristocrática, resultaram de ambições sociais diferentes, pois, na Europa, teriam de determinar uma evolução e, no continente americano, uma cisão, visto serem a emanação de um princípio político contrário, pois as classes sociais dominantes nasceram da fuga ao sistema aristocrático em busca de novas oportunidades em novos contextos geográficos e sociais.

Em Portugal, quanto a nós, o republicanismo foge ao paradigma francês, acabado de expor a traços largos, estando mais próximo do americano, porque não sendo evolutivo aproxima-se da cissura. Teremos de perceber porquê.
No século XIX a terratenência continuou a ser, antes e depois da vitória liberal de 1834, a afirmação de poder das classes dominantes endinheiradas, que mantiveram o modelo de cultura aristocrática, porque não houve desenvolvimento científico nem tecnológico determinante de um clima de confronto cultural capaz de justificar, só por si, um desejo de dominação do poder político. A aproximação à modernidade fez-se pela via académica, através da exploração do pensamento e da doutrina revolucionária. Foram as elites intelectuais nacionais que impuseram a abertura à modernidade, em especial, depois de 1870, quando a nova síntese republicana já estava em fase final de afirmação em França. Ou seja, a intelectualidade portuguesa aderente aos princípios republicanos, cindindo-se da normalidade nacional, tal como se tivesse emigrado ou tivesse nascido no continente americano. É esse grupo de cissura quem encabeça um proletariado sem consciência de condição e uma pequena classe burguesa, de onde é, afinal, originário, para lhe impor uma nova oportunidade política não resultante de uma mudança cultural, nem de um desafio para uma modernidade que quase lhe era desconhecida. A República não nasceu em Portugal a partir de um movimento ascensional das massas provocado pelas mudanças científicas e tecnológicas, mas de um movimento descendente dos princípios doutrinários apreendidos por uma elite contestatária que os transformou para gerar o engrossamento de uma oposição ao regime monárquico. É assim, que, quanto a nós, se justifica a necessidade de identificar os inimigos do Povo (republicano) que lhe atrofiavam a liberdade prometida pela República. E, de entre todos, ressalta um, por ser aquele que maior apoio dá à tradição monárquica e aristocrática: o clero católico. Aquilo que a pequena e média burguesia não viram, porque não existiu em Portugal — a evolução científica e tecnológica transportadora da modernidade —, tinha de ser imposto pela via revolucionária, que a elite republicana anunciava, destruindo as barreiras obscurantistas levantadas pelo clero católico.

Contudo, é preciso ter em devida conta o facto de que a única mudança efectiva ocorrida em 5 de Outubro de 1910 foi a do regime político, porque os Portugueses, esses, continuaram, em Portugal, com as mesmas qualidades e os mesmos defeitos e só levando a revolução republicana por diante se poderia rumar para a modernidade. Era um trabalho a ser feito pela ala mais profundamente teimosa dos republicanos, por aqueles que não estavam dispostos a ceder nem pactuar, mesmo que temporariamente, com a tradição herdada da Monarquia. A Grande Guerra foi, entre outros, talvez, o maior momento para exercer a teimosia republicana não por causa da imposição dos terrores e malefícios nela vividos, mas pelas oportunidades por ela geradas.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Uma guerra total


A grande maioria dos cidadãos de todos os Estados europeus, no começo do ano de 1914, pressentia que se vivia já no Velho Continente um clima de pré guerra. E calculava-se que os grandes antagonistas seriam a Alemanha, a Áustria, a Rússia, a França e a Grã-Bretanha. O conflito era previsível, face a todos os indícios que provocavam tensões nas chancelarias das grandes capitais. Era imaginável, pela enorme corrida económica que se vinha desenrolando, havia mais de trinta anos, entre a Alemanha e o Reino Unido e o desejo de vingança dos Franceses aquando da derrota imposta pelos Prussianos. A Alemanha unificada havia-se tornado no grande desestabilizador europeu; a França no grande acelerador de todas as desconfianças e a Rússia no grande potentado que desejava chegar aos mares quentes do Mediterrâneo através dos Balcãs. A Itália era a grande dúvida de todos, pois tanto poderia pender para o lado das potências marítimas como para o dos impérios do centro. A Inglaterra jogava entre a ameaça à Alemanha e a tentativa de estabelecer equilíbrios, que lhe mantivessem a primazia que julgava ainda possuir.

Neste cenário havia actores secundários de primeira e de segunda grandeza. Contudo, todos consideravam que, à semelhança dos conflitos militares europeus do século XIX, este seria rapidamente resolvido, saldando-se por dois ou três meses de guerra. Não se imaginava a realidade a ser vivida durante quatro anos. E também os políticos portugueses alinhavam nessa ideia da celeridade castrense. Talvez essa certeza tenha determinado toda a euforia, todo o entusiasmo bélico que, nos primeiros dias de Agosto de 1914, deram lugar a ruidosas e alegres manifestações da população de Lisboa junto dos edifícios das embaixadas inglesa e francesa.

De Agosto a Dezembro ruíram os prognósticos de uma guerra de curta duração. A grandeza dos exércitos que se enfrentaram impediu-lhes o movimento e foi fixando os homens ao terreno. Fixando e levando-os a enterrarem-se para sobreviverem aos novos artefactos de combate que os paralisavam: a metralhadora pesada — já estava posta de lado essa máquina de disparar projécteis a elevada cadência, mas sem precisão de maior, conhecida por Nordenfelt, que a Maxim destronou com facilidade —, a metralhadora ligeira, as peças de artilharia de campanha com grande capacidade de sucessivos disparos, os obuses e os morteiros. No fundo, e ao cabo e ao resto, as novas possibilidades de fazer fogo sobre o adversário impediram o uso de uma força que, nas batalhas anteriores, sempre rompeu barreiras, por muito fortes que fossem: a cavalaria. Era pecaminoso e inútil desgastar esse aríete que baqueava sem contemplações face à concentração de projécteis que o inutilizava. E foi desta forma que, findou o ano de 1914, tendo-se verificado a transferência do terror do campo de batalha para as cidades não muito distantes dele por causa dos aviões germânicos que, incólumes, bombardearam Paris e Londres. Mas, no mar, os submarinos alemães foram afundando e desarticulando as capacidades comerciais dos britânicos e dos restantes adversários.

Ainda antes do meio do ano de 1915, se era certo que ao longo das trincheiras que se haviam aberto da costa atlântica à fronteira suíça, se combatia e morria por causa de uma outra arma — os gases tóxicos —, também se havia ganho consciência do peso da guerra nas retaguardas por causa da fome que se ia instalando nas cidades e vilas da Europa. Não interessava se se era beligerante ou neutro, porque a interdependência comercial gerada ao longo de séculos, tendo como suporte o transporte naval, estava desconchavada e as faltas alimentares eram grandes por todo o lado.
A juntar a este novo cenário, surgiu uma imprensa que subtilmente envenenava a opinião pública, levando a acreditar que muitos estranhos acontecimentos se deviam à acção de espiões acobertados por diversas actividades nem sempre fáceis de explicar. O vizinho com hábitos esquisitos era um espião, um inimigo ainda que se lhe conhecessem os antecedentes familiares mais remotos.

A guerra ganhou contornos aterradores, porque já não era só um assunto de soldados. Era um mal terrível que, de maneiras diferentes, envolvia toda a gente. Começou a ser, nesse ano de 1915, uma guerra total. E, como se verá a seu tempo, também o foi entre nós, mesmo quando ainda ninguém nos havia declarado ou imposto a beligerância.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Como eram os “Serranos”

(Blog "APC -Gorgeios)



Se “Serranos” eram os soldados de Portugal que estiveram na frente de combate na Flandres francesa, durante a Grande Guerra, dá vontade de perguntar e dizer:
— Como eram os “Serranos”? Queremos conhecê-los!
Pois bem, já que os chamei ao presente, cabe-me apresentá-los.

Não vou começar pelos soldados já fardados e prontos a entrar em combate! Começarei pelos mancebos antes ainda de assentarem praça.
“Serranos” eram todos os jovens dessas aldeias do nosso país, que iam do Norte ao Sul, que estavam em serras, planaltos ou planícies. Igualava-os meia dúzia de traços muito profundos: o grande amor ao seu rincão natal, à sua aldeia, ao seu lugar e à sua vila, nos casos mais raros; uma enorme inocência da vida, que lhes dava uma candura total: acreditavam sem desconfiança no senhor padre, no senhor regedor, no rendeiro, no patrão, na autoridade desde que lhe falasse verdade ou que lhe falasse aquilo que julgavam verdade; a enorme capacidade de trabalho, rondando a dádiva total a troco de muito pouca coisa; o analfabetismo quase absoluto; a rudeza de carácter numa alma de criança endurecida pelos tratos da vida; uma fé inocente, girando a mera crendice, na religião, que começava a ser ensinada enquanto mamava o leite materno; uma força física, que não encontrava explicação no corpo franzino; mas, depois, nos antípodas destes traços dominantes, existia nesse jovem, que qualquer peralvilho da cidade de Lisboa ou do Porto achava ignaro e bronco, uma fúria inimaginável quando se sentia enganado, ludibriado e enxovalhado na sua honra simplória! Era uma fúria que lhe trazia, conforme a região do país, para as mãos, armas perigosíssimas, do varapau ao cajado, da enxada à navalha, a capacidade de matar sem remorso, de ferir sem compaixão, porque a justiça corria-lhe nas veias a par do sentido dos valores, que não tinham reviravoltas, porque vertical e inamovível era a sua postura na vida.

Este jovem sem artifícios, liso e duro como uma pedra de basalto polido, ao assentar praça, no regimento da cidade mais próxima da sua aldeia natal, ia aprender a ser soldado — orientando todos os seus valores para a entrega mais pura que pode haver aos seus graduados: os cabos, os sargentos e, no topo de todos, os seus oficiais a quem respeitava com sinais de verdadeira veneração — também, com os outros, os soldados mais antigos e conhecedores dos segredos das urbes maiores, as diferentes maneiras de se aproximar das mulheres, perdendo muita da inocência que dá forma à Natureza, para ganhar toda a ratonice que prolifera nos agregados sociais onde, a cada esquina da vida, há enganos e armadilhas; ia trazer para o “cosmopolitismo” possível da capital da província o seu olhar de águia desconhecedora de que há quem viva da simplicidade alheia e da distracção posta na caçada pela sobrevivência. Ele aprendia rápido, porque, iletrado, não era lerdo!
No quartel tinha veneração pelos mais graduados de todos os graduados e a palavra do “nosso” capitão tinha a força da do pai que deixara na aldeia — ele mesmo lho dissera, na hora da despedida! — e a do comandante só tinha comparação à de Moisés, quando descendo o monte Sinai, transportava as tábuas da Lei dadas por Deus!
Foi com estes homens que Portugal entrou na Grande Guerra. O seu retrato está traçado em cada folha de papel velho do velho arquivo que veio de França e em cada página dos relatórios escritos pelos oficiais, e por eles deixados para a História que há muitos anos fui desenterrando com carinho e cautela, pois a exumação dá vida, uma frágil vida, aos sentimentos e permite-nos antever os rostos desses jovens de repente trasladados para a maior carnificina que, até ao seu tempo, jamais tinha acontecido. Não se pode mexer nesses papéis com a frieza do cientista asséptico e descaracterizado de humanidade… Isso ofende-lhes a alma, que ainda paira viva sobre as letras desgastadas pelo tempo!

Este “Serrano”, depois de um século, depois da influência dos meios de comunicação e das facilidades de conhecer o mundo mesmo fechado na velha casa da quase deserta aldeia, já não existe entre nós! Eu tive a felicidade de conhecer as últimas espécies que serviram nas fileiras das nossas Forças Armadas. Esse Portugal e esses Portugueses foram engolidos pela globalização lenta ainda no começo dos anos sessenta do século passado e célere, muito célere, no final da centúria.

É sobre estes homens que eu vou continuar a escrever. Foi para estes homens que se construíram, por esse País fora, monumentos aos mortos da Grande Guerra.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Do Ultimato para a Grande Guerra




Poderá parecer quase disparatado invocar o ultimato inglês de 1890, mandado ao Governo de Portugal, para o ligar à Grande Guerra e à disparidade de posições políticas adoptadas entre nós quanto à participação no conflito bélico. Contudo, o disparate desfaz-se em poucas palavras, carecendo só de ser explicado.

Recordemos o quanto foi traumática, no começo da última dezena de anos do século XIX, para os cidadãos politicamente conscientes, a atitude da Grã-Bretanha a propósito da intenção de Portugal reivindicar para si uma parcela de território africano, que já Londres considerava sua, por direito de ocupação anterior. O brutal aviso feito pelo Governo de Sua Majestade Britânica ao seu mais que fraco aliado correspondeu não só à ofensa que um amigo faz a outro quando o ameaça de retaliações incapazes de suportar como, também, à impudica atitude de prometer pancada a quem jamais terá corpo, cara, físico para aguentar um mínimo encontrão! Mais do que a ameaça, em Portugal sentiu-se a pequenez miseranda a que se havia chegado quatrocentos anos depois de se ter dividido, com a Espanha, em duas metades, o poder de ocupar o planeta Terra naquilo que era desconhecido da, então, ainda limitada Inglaterra. A população com alguma ilustração intelectual acordou espavorida perante a humilhante atitude de uma Grã-Bretanha impante e poderosa da sua capacidade industrial e da incomparável máquina comercial, que levava a todo o mundo os produtos fabricados pelos seus mais que explorados operários. Não foi uma bofetada dada com luva de pelica calçada, mas um burro boçal, que acertou em cheio na parte nevrálgica de um Estado que, empenhado e falido, se debatia para ainda se apresentar na Europa e no mundo com alguma dignidade, escondendo sob a casaca puída os andrajos impostos por incapacidades e faltas inultrapassáveis.
Foi tão forte o sentimento que, entre outras reacções anti-britânicas, se compôs um hino de revolta inspirado nos valores passados e apelando para a força anímica de um Povo, supunha-se, capaz de sobrepujar, apoiado na coragem, as desditas da miséria. E também se deixou de ensinar nos liceus o idioma inglês! Se havia já na época fundamentos para desconfiar da honestidade de princípios da Inglaterra, eles avolumaram-se, levando a que à velha aliada se lhe chamasse Pérfida Albion, repescando assim a designação criada, no século XVIII, pelo poeta e diplomata francês de origem aragonesa Augustin Louis Marie de Ximénès, morto em 1817.

E não eram vãs as suspeições, pois, em 1898, com restrito conhecimento nos meios diplomáticos e políticos nacionais, Londres e Berlim, a troco da redução ou paragem do programa germânico de construção de uma poderosa marinha de guerra, se amanhou a partilha das mais ricas colónias africanas portuguesas acobertada armadilha por um volumoso empréstimo financeiro a ceder pelos bancos britânicos e alemãs ao carecido Portugal. Salvou-nos do esbulho a França, então, ainda não entendida com a Grã-Bretanha.

Mas que herança receberam os políticos nacionais para, em 1914, quando a Grande Guerra começou na Europa, ligarem o já temporalmente distante Ultimato ao recente conflito militar?
A resposta obtemo-la hoje se nos debruçarmos atentamente sobre as biografias desses homens e lhe fixarmos as idades! Muitos deles tinham vinte anos, um pouco menos ou um pouco mais, quando a Inglaterra ofendeu gravemente a honra de um Portugal quase sempre submisso perante a grandeza britânica. E esses homens transportavam ainda na memória a dor do boçal murro mais semelhante ao coice de uma besta sem outro merecimento do que o de estar bem ajaezada e alimentada para servir os gordos capitalistas desse reino tão perverso quanto manhoso. Infelizmente, diz-se entre nós, a memória é sempre curta quando a falta de vergonha é sempre grande. Daí que, para bastantes Portugueses, a lembrança do Ultimato se lhes tenha varrido como se um conveniente ciclone lhes tivesse desmanchado os arrumos da lembrança.

Há sempre gente pronta a esquecer quando lembrar não é conveniente!

segunda-feira, 16 de março de 2015

“Guerristas” e “Antiguerristas”


Mal se iniciaram as primeiras operações militares na Europa já em Portugal se tinham dividido as opiniões sobre a entrada na guerra. E logo se chamaram de “Guerristas” os que dela fizeram a apologia, invocando a necessidade do País assumir uma posição beligerante e de “Antiguerristas” os que se lhe opunham. Curiosamente, colou-se a estes últimos um outro labéu: germanófilos. E sê-lo-iam? Para dar uma resposta em consciência e apoiada em informação fidedigna, devo dizer que poucos, muito poucos — embora muito activos — deveriam ser aqueles que, na realidade, desejavam a vitória da Alemanha. Nestes podemos contar os monárquicos simpatizantes e apoiantes da causa dos descendentes de D. Miguel I.
Então quem eram os “Antiguerristas”?
Antes de se colarem rótulos, sou de opinião que devemos aceitar aqueles que a si mesmo como tal se identificavam e, nesse domínio, só a corrente anarco-sindicalista, e nem toda, se declarava contra a guerra. Os restantes eram “Antiguerristas”, porque recusavam o envolvimento de Portugal na frente ocidental, onde já lutavam as forças militares britânicas.

Há, neste tempo de comemoração de centenário, quem venha branquear os “Antiguerristas” querendo-os separar em dois grupos: os que, de todo em todo, recusavam a beligerância e os que a aceitavam em África, defendendo as colónias nacionais que faziam fronteira com as que eram de posse alemã.
Quanto a mim, trata-se de tentar enganar a interpretação correcta que se deve fazer da situação. De facto, toda a gente sabia que os destinos dos territórios coloniais portugueses seriam discutidos se o Governo de Lisboa não marcasse presença onde era importante e imprescindível fazê-lo: na frente operacional europeia! Nas trincheiras do Ocidente. Todos os restantes teatros de operações eram secundários em relação a esse que colocava em risco a sobrevivência da França e da Bélgica. Era a vitória ou a derrota na Europa quem ditaria destinos no resto do mundo. E disto toda a gente ilustrada e informada começou a aperceber-se ainda no ano de 1914, quando as frentes se imobilizaram e a guerra de movimento deu lugar a uma guerra de sítio onde os cercados também cercavam.

Brito Camacho, o líder dos Unionistas, o mais conservador dos partidos republicanos, enchia a boca e as páginas do seu jornal, proclamando a vontade de combater nas colónias, se tal fosse preciso, para defender a integridade territorial portuguesa! E quem é que pretendia enganar, já que sendo experiente na política não devia estar ele mesmo enganado? Todos os que, por comodidade ou poltronaria, desejavam afastar a possibilidade de combater em França, colocando a vaga hipótese de alguma vez a Alemanha, por causa de ocupar as colónias nacionais, declarar guerra a Portugal e as invadir! Ora, vão mangar com outros, porque debaixo da roupagem do medo, deixando um grande rabo de fora, estavam estes “Antiguerristas”, que alguns historiadores de agora querem desprender do rótulo, que muito bem lhes foi preso nas costas e nas frentes das casacas então ainda em uso!
São disfarces para poderem julgar e atacar a causa dos “Guerristas” que, estrenuamente, perceberam os intrincados laços de uma política externa nacional que manietava a jovem República portuguesa. Eles sabem, mas escolhem, um atrás de outro, os argumentos que coloquem, historicamente, em má posição todos quantos tomaram o novo regime político como único motor capaz de romper com o conservadorismo comodista que campeava em Portugal havia já, então, mais de três dezenas de anos.

Tenhamos a coragem de explicar, de verdade, a verdade da situação nacional.

domingo, 15 de março de 2015

Capacidade militar em 1914

(Soldado português: Armando Boaventura, 1919) 

Tenho lido e ouvido argumentar, com base na fraquíssima capacidade militar de Portugal, em 1914, o quanto foi inapropriada a beligerância nacional na Grande Guerra. Essa incapacidade, no dizer dos que entendem errada a entrada no conflito, no teatro europeu, deveria ter sido suficiente para motivar os governantes e toda a classe política a aceitar aquele estatuto ambíguo e equívoco — não neutral e não beligerante —, que a Inglaterra havia solicitado, sob a forma de imposição, ao Governo Bernardino Machado, em Agosto do ano inicial da guerra.
Na minha opinião, esta é uma das mais levianas análises da política externa portuguesa de há cem anos. De há cem anos, como poderia ser de agora!

É verdade que a República havia herdado da Monarquia um Exército quase só apropriado para colorir certos actos públicos, reprimir qualquer desordem interna, combater as hordas africanas que se não submetessem ao domínio colonial português e pouco mais, pois até, para garantir a sobrevivência da independência nacional face a qualquer aventura espanhola, ele teria pouca eficácia. Sendo verdade, parece estulta a minha posição crítica perante a argumentação desses historiadores, que proclamam o erro da beligerância! Mas não é! Vejamos.

Tal como nas famílias, há momentos em que os Estados têm de empenhar o presente e futuro para garantir uma continuidade razoavelmente digna nesse mesmo futuro. Nessas circunstâncias há que não olhar a sacrifícios, dando força a tudo e a todos que a não têm. Nessas circunstâncias, como em quase todas as restantes, quando não se toma a posição de Estado agressor, as Forças Armadas são, e têm de ser, o elemento paliativo da paz que se segue à guerra. Quase arriscaria a dizer que os Exércitos, nas suas três vertentes de emprego, gerando violência, são, acima de tudo, elementos diplomáticos, porque a sua missão primeira terá de ser a de, ao serviço da defesa, darem espaço para a manobra política e, mais do que política, diplomática.
Só compreendendo o uso da força militar nesta perspectiva — que é a única para que existe, pois a dissuasão é também uma forma de fazer ou propiciar a diplomacia — é que se pode avaliar a beligerância como acto defensivo e, por conseguinte, como base do exercício da política por outros meios. Assim, independentemente da capacidade militar de um qualquer Estado, são os fins últimos que devem ditar o envolvimento no conflito bélico, mesmo que se saibam ser fracas as possibilidades efectivas das Forças Armadas, não as discutindo, ainda que tentando melhorá-las, principalmente se elas forem actuar no contexto de uma aliança.

Os historiadores e todos quantos opinam — com maiores ou menores conhecimentos para o fazerem — sobre a entrada de Portugal na Grande Guerra, condicionando-a à fraqueza do Exército e da Armada de então, para além de não explicarem a necessidade da beligerância, alinhando pelas razões miúdas dos que a ela se opunham, dão mostras de falta de compreensão dos superiores interesses do Estado português na época e da abrangência circular que deve ter a análise política de uma situação onde, em última instância, se discutiam prevalências de independências futuras.

O argumento da quase ineficácia das Forças Armadas de Portugal, em 1914, para justificar o que entendem como um erro a beligerância nacional, é, como julgo ter vagamente demonstrado, um artifício, que, não explicando os factos, se limita a reproduzir uma reduzida ou parcelar visão da ampla ameaça que caía sobre o País nesse Agosto fatídico.

Explicar ou julgar?


Tenho ouvido e lido, em especial nos últimos tempos, muito disparate sobre a entrada de Portugal na Grande Guerra, porque quem fala ou escreve sobre o assunto não sabe adoptar a posição correcta e única: não cometer erros anacrónicos!
Vejamos.

Em História não há sesse tivesse sido assim; se fulano não tomasse a atitude tal, etc. —, porque a única condição do discurso tem de ser sempre a do que realmente aconteceu e mais nenhuma. A História relata e, o mais que pode, e deve, fazer, é explicar. Mas o historiador tem de munir-se de todas as cautelas para fugir de, no acto explicativo, deixar escapar o julgamento, mesmo que velado.

Como já disse no início, a beligerância portuguesa na Grande Guerra tem sido, quase constantemente, julgada por quem simplesmente a devia contar e explicar. E isto acontece, na minha opinião, por dois motivos: primeiro, porque a falsa neutralidade nacional na 2.ª Guerra Mundial se constituiu, segundo o libelo acusatório do fascismo português, numa forma de culpar a 1.ª República pela beligerância activa na Grande Guerra, e há ainda quem, afinal, aceite as razões fascistas sem se interrogar; segundo, porque, tendo a 1.ª República sido um tempo de grandes e profundas desavenças políticas, que escondiam, acima de tudo a eterna luta social entre a Mudança e o Conservadorismo, faz com que o historiador, emocionalmente, se deixe envolver nesse confronto e se cole ao pensamento que mais vai de acordo com a sua maneira de sentir, caindo, desta forma, na armadilha da luta política que procura relatar e explicar.
Claro que, se o historiador tiver uma consciência ética muito apurada, deve começar por se perceber a si mesmo e fazer claramente a opção entre os dois campos da luta social, que o estudo da Antropologia Cultural tão bem explica. Se deste modo proceder, não receia assumir a sua explicação à luz do entendimento que faz da vida, sem, contudo, julgar, mas, tão-somente, desvendar os liames das partes em confronto e, assim, dar ao leitor ou ao ouvinte a possibilidade de este compreender a luta justificativa das tomadas de posição política ocorridas no passado.


Diz-se — e eu sou um exemplo disso — que os confrontos sociais têm como explicação base os fenómenos económicos, porque, por trás das grandes motivações regidas pela alta finança está sempre a ambição de aumento da riqueza. Todavia, não receio pôr em paralelo com esta motivação, aquela que é dada pelos antropólogos culturais, e que antes referi, porque a economia é o motor que alimenta ou retarda a marcha social rumo à Mudança (grafo a palavra com maiúscula, pois acho-lhe importância determinante na vida dos povos) e, na explicação genérica e última que dou da 1.ª República, entendo que foi o confronto entre o mudar e o conservar quem determinou a vitória da ditadura militar e fascista — logo, conservadora — de 28 de Maio de 1926. A beligerância nacional na Grande Guerra foi o grande rastilho que ateou a explosão desse confronto.

sábado, 14 de março de 2015

Carta de intenções



Interessei-me pelo estudo de Portugal e a Grande Guerra exactamente nos meses finais do ano de 1981. Fiz a minha primeira visita ao Arquivo Histórico Militar (AHM) talvez no mês de Novembro e ia já com o objectivo de ver o espólio do Corpo Expedicionário Português (CEP). Fiquei espantado com a quantidade de documentos onde podia mergulhar e, porque era imensa, atirei-me àquilo que era mais evidente e mais conhecido: os relatórios da batalha de La Lys. Comecei a perceber que havia entrado numa outra dimensão da História. Tinha de deixar a documentação e fincar-me no estudo da época, ou seja, da 1.ª República. Passei a alternar as minhas visitas ao AHM com outras à Biblioteca Nacional para estudar o regime que, em Portugal, mudara pouco antes do início da guerra. Pouco tempo decorrido uma nova necessidade se me impôs: estudar os últimos trinta anos de Monarquia. E foi deste modo que cresceu em mim o conhecimento militar do CEP e o da envolvente política que esteve na sua origem.
Se a minha paixão maior foi, de começo, o empenhamento militar, os anos vieram provar que era embrenhando-me na questão política nacional e internacional a forma de o conhecer na sua vertente mais nobre: a do envolvimento na hecatombe de ferro e fogo que martirizava, de um lado a outro, a Europa.

Falar de Portugal na Grande Guerra é falar do quotidiano político dos últimos anos da Monarquia e dos anos iniciais da 1.ª República. Mas terá de ser sempre falar do Povo e, saído dele, como emanação natural de vitalidade, falar dos soldados combatentes na Flandres francesa.
Vai ser essa amálgama que vou deixar, em curtos apontamentos, neste blogue, escritos aqui no meu abrigo, rodeado de livros em vez de sacos de terra, sem grandes preocupações de apresentação académica — mas sem fugir ao seu rigor —, tentado que, para além de exercerem uma função de divulgação de conhecimentos sejam, acima de tudo, uma homenagem aos Portugueses de há cem anos, que ligaram os destinos da República aos da luta travada na Europa e, um pouco, por todo o mundo. Esses apontamentos, sendo para o leitor, são especialmente para honrar memórias esquecidas e, nos tempos que correm, na minha opinião, nem sempre lembradas do modo mais conveniente.

O tempo e a paciência ditarão o ritmo dos textos. Os resultados logo se verão.