Poder-se-á colocar a seguinte pergunta, com finalidade meramente
retórica: «Qual foi a razão justificativa da alteração do regime político de
monárquico para republicano, em Portugal, tornando-o um dos Estados pioneiros,
na Europa, neste tipo de organização política?»
A resposta não é fácil, porque exige uma análise profunda das raízes da
mudança, que, provavelmente, não caberá num simples artigo sem grandes
pretensões e, mais a mais, limitado à temática da beligerância portuguesa na
Grande Guerra, embora esta seja fruto daquela (para nós, a mudança de regime
foi determinante da beligerância, ainda que não seja historicamente possível
provar o contrário).
Na viragem do século XVII para o século XVIII, em Portugal, como um pouco
por toda a Europa, poder-se-iam identificar, a traços largos e correspondentes
a uma generalização talvez abusiva, três grandes grupos sociais arrumados
segundo critérios de fortuna, origem da fortuna e conhecimentos de cultura
erudita: os totalmente desapossados de bens e de cultura; os terratenentes com
títulos de nobreza e a cultura própria da sua condição; e, por fim, os
comerciantes por grosso e a retalho, possuidores de terras, de capitais ou de
ambos e com algum grau de cultura erudita adquirida em estabelecimentos de
ensino.
Na Europa, o século XVIII foi o tempo das grandes descobertas científicas
e da afirmação do saber controlado pelo experimentalismo científico. Este facto
colocou em confronto dois modelos de cultura: a aristocrática, onde imperavam
valores de vivência social, delimitados pela tradição religiosa, e pouco mais,
e a burguesa, onde cabiam os novos conhecimentos científicos e, acima de tudo,
a nova abertura à compreensão do mundo, tentando romper com as peias de uma
prática religiosa, que tolhiam a análise das grandes questões da vida e,
consequentemente, a colocação da dúvida sobre a orientação política determinada
pelo absolutismo monárquico e o império da aristocracia. A Revolução Francesa,
em 1789, foi a expressão máxima deste confronto, sobrepondo-se a modernidade à
tradição aristocrática. Depois das contradições imperiais napoleónicas e
monárquicas que se lhe seguiram, onde se miscigenaram
os princípios da cultura aristocrática e os da cultura burguesa numa evidente
afirmação dialéctica que buscava a síntese apropriada, a proclamação da
República em França veio dar corpo e sentido ao novo regime numa Europa que,
necessariamente, não podia reflectir o regime republicano já existente nas
Américas. Os fenómenos republicanos no Velho e no Novo Mundo, tendo a mesma
matriz de repulsa monárquica e aristocrática, resultaram de ambições sociais
diferentes, pois, na Europa, teriam de determinar uma evolução e, no continente americano, uma cisão, visto serem a emanação de um princípio político contrário,
pois as classes sociais dominantes nasceram da fuga ao sistema aristocrático em busca de novas oportunidades em
novos contextos geográficos e sociais.
Em Portugal, quanto a nós, o republicanismo foge ao paradigma francês,
acabado de expor a traços largos, estando mais próximo do americano, porque não
sendo evolutivo aproxima-se da cissura. Teremos de perceber porquê.
No século XIX a terratenência continuou a ser, antes e depois da vitória
liberal de 1834, a afirmação de poder das classes dominantes endinheiradas, que
mantiveram o modelo de cultura aristocrática, porque não houve desenvolvimento
científico nem tecnológico determinante de um clima de confronto cultural capaz
de justificar, só por si, um desejo de dominação do poder político. A aproximação
à modernidade fez-se pela via académica, através da exploração do pensamento e
da doutrina revolucionária. Foram as elites intelectuais nacionais que
impuseram a abertura à modernidade,
em especial, depois de 1870, quando a nova síntese republicana já estava em
fase final de afirmação em França. Ou seja, a intelectualidade portuguesa
aderente aos princípios republicanos, cindindo-se
da normalidade nacional, tal como se
tivesse emigrado ou tivesse nascido no continente americano. É esse grupo de cissura quem encabeça um proletariado
sem consciência de condição e uma pequena classe burguesa, de onde é, afinal,
originário, para lhe impor uma nova
oportunidade política não resultante de uma mudança cultural, nem de um desafio
para uma modernidade que quase lhe era desconhecida. A República não nasceu em
Portugal a partir de um movimento ascensional das massas provocado pelas
mudanças científicas e tecnológicas, mas de um movimento descendente dos
princípios doutrinários apreendidos por uma elite contestatária que os
transformou para gerar o engrossamento de uma oposição ao regime monárquico. É
assim, que, quanto a nós, se justifica a necessidade de identificar os inimigos do Povo (republicano) que lhe
atrofiavam a liberdade prometida pela
República. E, de entre todos, ressalta um, por ser aquele que maior apoio dá à
tradição monárquica e aristocrática: o clero católico. Aquilo que a pequena e
média burguesia não viram, porque não existiu em Portugal — a evolução
científica e tecnológica transportadora da modernidade —, tinha de ser imposto
pela via revolucionária, que a elite republicana anunciava, destruindo as
barreiras obscurantistas levantadas pelo clero católico.
Contudo, é preciso ter em devida conta o facto de que a única mudança
efectiva ocorrida em 5 de Outubro de 1910 foi a do regime político, porque os
Portugueses, esses, continuaram, em Portugal, com as mesmas qualidades e os
mesmos defeitos e só levando a revolução republicana por diante se poderia
rumar para a modernidade. Era um trabalho a ser feito pela ala mais
profundamente teimosa dos republicanos, por aqueles que não estavam dispostos a
ceder nem pactuar, mesmo que temporariamente, com a tradição herdada da
Monarquia. A Grande Guerra foi, entre outros, talvez, o maior momento para
exercer a teimosia republicana não
por causa da imposição dos terrores e malefícios nela vividos, mas pelas
oportunidades por ela geradas.