quinta-feira, 9 de abril de 2015

A teimosia republicana


Poder-se-á colocar a seguinte pergunta, com finalidade meramente retórica: «Qual foi a razão justificativa da alteração do regime político de monárquico para republicano, em Portugal, tornando-o um dos Estados pioneiros, na Europa, neste tipo de organização política?»
A resposta não é fácil, porque exige uma análise profunda das raízes da mudança, que, provavelmente, não caberá num simples artigo sem grandes pretensões e, mais a mais, limitado à temática da beligerância portuguesa na Grande Guerra, embora esta seja fruto daquela (para nós, a mudança de regime foi determinante da beligerância, ainda que não seja historicamente possível provar o contrário).

Na viragem do século XVII para o século XVIII, em Portugal, como um pouco por toda a Europa, poder-se-iam identificar, a traços largos e correspondentes a uma generalização talvez abusiva, três grandes grupos sociais arrumados segundo critérios de fortuna, origem da fortuna e conhecimentos de cultura erudita: os totalmente desapossados de bens e de cultura; os terratenentes com títulos de nobreza e a cultura própria da sua condição; e, por fim, os comerciantes por grosso e a retalho, possuidores de terras, de capitais ou de ambos e com algum grau de cultura erudita adquirida em estabelecimentos de ensino.
Na Europa, o século XVIII foi o tempo das grandes descobertas científicas e da afirmação do saber controlado pelo experimentalismo científico. Este facto colocou em confronto dois modelos de cultura: a aristocrática, onde imperavam valores de vivência social, delimitados pela tradição religiosa, e pouco mais, e a burguesa, onde cabiam os novos conhecimentos científicos e, acima de tudo, a nova abertura à compreensão do mundo, tentando romper com as peias de uma prática religiosa, que tolhiam a análise das grandes questões da vida e, consequentemente, a colocação da dúvida sobre a orientação política determinada pelo absolutismo monárquico e o império da aristocracia. A Revolução Francesa, em 1789, foi a expressão máxima deste confronto, sobrepondo-se a modernidade à tradição aristocrática. Depois das contradições imperiais napoleónicas e monárquicas que se lhe seguiram, onde se miscigenaram os princípios da cultura aristocrática e os da cultura burguesa numa evidente afirmação dialéctica que buscava a síntese apropriada, a proclamação da República em França veio dar corpo e sentido ao novo regime numa Europa que, necessariamente, não podia reflectir o regime republicano já existente nas Américas. Os fenómenos republicanos no Velho e no Novo Mundo, tendo a mesma matriz de repulsa monárquica e aristocrática, resultaram de ambições sociais diferentes, pois, na Europa, teriam de determinar uma evolução e, no continente americano, uma cisão, visto serem a emanação de um princípio político contrário, pois as classes sociais dominantes nasceram da fuga ao sistema aristocrático em busca de novas oportunidades em novos contextos geográficos e sociais.

Em Portugal, quanto a nós, o republicanismo foge ao paradigma francês, acabado de expor a traços largos, estando mais próximo do americano, porque não sendo evolutivo aproxima-se da cissura. Teremos de perceber porquê.
No século XIX a terratenência continuou a ser, antes e depois da vitória liberal de 1834, a afirmação de poder das classes dominantes endinheiradas, que mantiveram o modelo de cultura aristocrática, porque não houve desenvolvimento científico nem tecnológico determinante de um clima de confronto cultural capaz de justificar, só por si, um desejo de dominação do poder político. A aproximação à modernidade fez-se pela via académica, através da exploração do pensamento e da doutrina revolucionária. Foram as elites intelectuais nacionais que impuseram a abertura à modernidade, em especial, depois de 1870, quando a nova síntese republicana já estava em fase final de afirmação em França. Ou seja, a intelectualidade portuguesa aderente aos princípios republicanos, cindindo-se da normalidade nacional, tal como se tivesse emigrado ou tivesse nascido no continente americano. É esse grupo de cissura quem encabeça um proletariado sem consciência de condição e uma pequena classe burguesa, de onde é, afinal, originário, para lhe impor uma nova oportunidade política não resultante de uma mudança cultural, nem de um desafio para uma modernidade que quase lhe era desconhecida. A República não nasceu em Portugal a partir de um movimento ascensional das massas provocado pelas mudanças científicas e tecnológicas, mas de um movimento descendente dos princípios doutrinários apreendidos por uma elite contestatária que os transformou para gerar o engrossamento de uma oposição ao regime monárquico. É assim, que, quanto a nós, se justifica a necessidade de identificar os inimigos do Povo (republicano) que lhe atrofiavam a liberdade prometida pela República. E, de entre todos, ressalta um, por ser aquele que maior apoio dá à tradição monárquica e aristocrática: o clero católico. Aquilo que a pequena e média burguesia não viram, porque não existiu em Portugal — a evolução científica e tecnológica transportadora da modernidade —, tinha de ser imposto pela via revolucionária, que a elite republicana anunciava, destruindo as barreiras obscurantistas levantadas pelo clero católico.

Contudo, é preciso ter em devida conta o facto de que a única mudança efectiva ocorrida em 5 de Outubro de 1910 foi a do regime político, porque os Portugueses, esses, continuaram, em Portugal, com as mesmas qualidades e os mesmos defeitos e só levando a revolução republicana por diante se poderia rumar para a modernidade. Era um trabalho a ser feito pela ala mais profundamente teimosa dos republicanos, por aqueles que não estavam dispostos a ceder nem pactuar, mesmo que temporariamente, com a tradição herdada da Monarquia. A Grande Guerra foi, entre outros, talvez, o maior momento para exercer a teimosia republicana não por causa da imposição dos terrores e malefícios nela vividos, mas pelas oportunidades por ela geradas.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Uma guerra total


A grande maioria dos cidadãos de todos os Estados europeus, no começo do ano de 1914, pressentia que se vivia já no Velho Continente um clima de pré guerra. E calculava-se que os grandes antagonistas seriam a Alemanha, a Áustria, a Rússia, a França e a Grã-Bretanha. O conflito era previsível, face a todos os indícios que provocavam tensões nas chancelarias das grandes capitais. Era imaginável, pela enorme corrida económica que se vinha desenrolando, havia mais de trinta anos, entre a Alemanha e o Reino Unido e o desejo de vingança dos Franceses aquando da derrota imposta pelos Prussianos. A Alemanha unificada havia-se tornado no grande desestabilizador europeu; a França no grande acelerador de todas as desconfianças e a Rússia no grande potentado que desejava chegar aos mares quentes do Mediterrâneo através dos Balcãs. A Itália era a grande dúvida de todos, pois tanto poderia pender para o lado das potências marítimas como para o dos impérios do centro. A Inglaterra jogava entre a ameaça à Alemanha e a tentativa de estabelecer equilíbrios, que lhe mantivessem a primazia que julgava ainda possuir.

Neste cenário havia actores secundários de primeira e de segunda grandeza. Contudo, todos consideravam que, à semelhança dos conflitos militares europeus do século XIX, este seria rapidamente resolvido, saldando-se por dois ou três meses de guerra. Não se imaginava a realidade a ser vivida durante quatro anos. E também os políticos portugueses alinhavam nessa ideia da celeridade castrense. Talvez essa certeza tenha determinado toda a euforia, todo o entusiasmo bélico que, nos primeiros dias de Agosto de 1914, deram lugar a ruidosas e alegres manifestações da população de Lisboa junto dos edifícios das embaixadas inglesa e francesa.

De Agosto a Dezembro ruíram os prognósticos de uma guerra de curta duração. A grandeza dos exércitos que se enfrentaram impediu-lhes o movimento e foi fixando os homens ao terreno. Fixando e levando-os a enterrarem-se para sobreviverem aos novos artefactos de combate que os paralisavam: a metralhadora pesada — já estava posta de lado essa máquina de disparar projécteis a elevada cadência, mas sem precisão de maior, conhecida por Nordenfelt, que a Maxim destronou com facilidade —, a metralhadora ligeira, as peças de artilharia de campanha com grande capacidade de sucessivos disparos, os obuses e os morteiros. No fundo, e ao cabo e ao resto, as novas possibilidades de fazer fogo sobre o adversário impediram o uso de uma força que, nas batalhas anteriores, sempre rompeu barreiras, por muito fortes que fossem: a cavalaria. Era pecaminoso e inútil desgastar esse aríete que baqueava sem contemplações face à concentração de projécteis que o inutilizava. E foi desta forma que, findou o ano de 1914, tendo-se verificado a transferência do terror do campo de batalha para as cidades não muito distantes dele por causa dos aviões germânicos que, incólumes, bombardearam Paris e Londres. Mas, no mar, os submarinos alemães foram afundando e desarticulando as capacidades comerciais dos britânicos e dos restantes adversários.

Ainda antes do meio do ano de 1915, se era certo que ao longo das trincheiras que se haviam aberto da costa atlântica à fronteira suíça, se combatia e morria por causa de uma outra arma — os gases tóxicos —, também se havia ganho consciência do peso da guerra nas retaguardas por causa da fome que se ia instalando nas cidades e vilas da Europa. Não interessava se se era beligerante ou neutro, porque a interdependência comercial gerada ao longo de séculos, tendo como suporte o transporte naval, estava desconchavada e as faltas alimentares eram grandes por todo o lado.
A juntar a este novo cenário, surgiu uma imprensa que subtilmente envenenava a opinião pública, levando a acreditar que muitos estranhos acontecimentos se deviam à acção de espiões acobertados por diversas actividades nem sempre fáceis de explicar. O vizinho com hábitos esquisitos era um espião, um inimigo ainda que se lhe conhecessem os antecedentes familiares mais remotos.

A guerra ganhou contornos aterradores, porque já não era só um assunto de soldados. Era um mal terrível que, de maneiras diferentes, envolvia toda a gente. Começou a ser, nesse ano de 1915, uma guerra total. E, como se verá a seu tempo, também o foi entre nós, mesmo quando ainda ninguém nos havia declarado ou imposto a beligerância.