sábado, 6 de agosto de 2016

Uma crítica antecipada

António José Telo e Pedro Marquês de Sousa (este, numa associação que não o favorece no plano académico e historiográfico) são os autores do livro significativamente intitulado O CEP: Os militares sacrificados pela má política. E o título é já em si mesmo um programa, poderemos dizer sem receio, anti-histórico, porque adjectiva a política, chamando-lhe má, e aceitando, por conseguinte, que haveria uma boa política que não foi executada e não teria sacrificado o CEP (que, os pouco entendidos em coisas de História e militares, não percebem o que é). O título é, portanto, um erro histórico, indiciando que tudo o mais o será.
E é um erro histórico, porquê? Pela razão simples de conter um julgamento, pois a História não julga! A História relata e explica! Quando se diz má política ultrapassou-se o limite da História para entrar no da propaganda. Em História, a política foi o que foi e, se a qualificamos de , não cometendo o pior dos erros — o anacronismo —, é porque nos estamos a colocar no mesmo plano daqueles que, no tempo, se opunham à política praticada e, assim sendo, não fazemos História, porque fazemos jogo político. E, se se fizer jogo político, não vamos explicar, e muito menos contar, com distanciamento. Vamos explicar, usando dos argumentos que nos colocam como opositores dos acontecimentos e, deste modo, não contamos… influenciamos. É neste princípio que a obra de António José Telo e Marquês de Sousa se desenvolve.

Não cabe aqui e agora fazer uma análise pormenorizada do livro. Daria, e dará, um outro livro que iria, e irá, desmontar toda a suposta arquitectura histórica usada pelos autores.
Este plano vinha já bem de longe! Em 2014, ou talvez antes, estava gizado e mereceu o apoio institucional e financeiro da Comissão Coordenadora Para a Evocação do Centenário da I Guerra Mundial, em cujo projecto se pode ler:
«[…] procura assim uma compreensão geral e abrangente da conflitualidade e da beligerância portuguesa, salientando o que ela tem de original e desenvolvendo um aparelho conceptual próprio para comparar a acção em vários teatros. É um projeto que coloca a tónica justamente naquilo que as análises portuguesas sobre a Grande Guerra normalmente ignoram:
-A ligação entre o político e o militar;
-A inserção da Grande Guerra (1914-1918) na guerra civil intermitente portuguesa (1908-1927), com duas revoluções vitoriosas a nível nacional (1915 e 1917), múltiplas insurreições e pronunciamentos (em todos os anos) e uma guerra civil oficial no fim do conflito global (1919);
-A ligação entre o interno e o externo;
-A inserção de Portugal no sistema internacional» (sublinhados da minha autoria). (Encontra-se este texto no seguinte endereço electrónico: http://www.portugalgrandeguerra.defesa.pt/Paginas/LinhadeInvestiga%C3%A7%C3%A3o.aspx).

Terá sido a ignorância ou a falta de conselho avisado que levou à tomada de decisão, permitindo que visse a luz do dia aquilo que deveria ficar esquecido, porque não tem a característica científica mínima para poder ser divulgada? E, não tem, porque parte de pressupostos falsos. Vejamos, com algum cuidado a justificação do projecto.
«[…] coloca a tónica justamente naquilo que as análises portuguesas sobre a Grande Guerra normalmente ignoram […]».
Isto é falso! É falso, porque, como à frente provarei, eu mesmo fiz trabalhos na vertente que António José Telo diz serem ignorados pelas análises portuguesas. Continuemos.
«-A ligação entre o político e o militar».
Basta uma breve consulta ao meu livro Do Intervencionismo ao Sidonismo: Os dois segmentos da política de guerra na 1.ª República: 1916-1918, editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, em 2010, para se observar, quando enuncio o objectivo da obra, a falsidade da afirmação feita: «Em face do material por nós recolhido seleccionámo-lo para formularmos um problema que representasse uma nova forma de olhar a participação portuguesa na Grande Guerra, em França. Marcámos um objectivo a nós mesmos e é ele quem nos orienta neste trabalho: demonstrar que a participação militar portuguesa na 1.ª Guerra Mundial, em França, sofreu um conjunto de vicissitudes cuja origem se situou dentro e fora do âmbito castrense nacional, gerando dois «tempos», dois «modos» e, até, dois «tipos de comando» diferentes no Corpo Expedicionário Português durante o período que medeia de Janeiro de 1917 a Novembro de 1918. Quer dizer, não nos interessa estudar a vida do CEP desligada do desenrolar da vida política nacional; um estudo exclusivamente limitado ao quotidiano do Corpo Expedicionário na frente de batalha dar-nos-ia uma visão distorcida da verdade. Seria um simples relato de meras ocorrências desgarradas do seu contexto mais profundo. O que se passou em França, na frente de combate, e o que ocorreu em Portugal não se deve dissociar, porque as influências se interpenetraram — naturalmente que o todo teve maior repercussão sobre a parte do que a inversa, ou seja, os acontecimentos em Portugal reflectiram-se com maior incidência no CEP do que os deste no país.
O Corpo Expedicionário foi uma continuação de Portugal em França; estudá-lo somente como um fenómeno de natureza castrense era desenraizá-lo de um contexto muito mais vasto no qual ele, de facto, viveu. Também teremos oportunidade de perceber que a política portuguesa, só pelo facto de se ter constituído aquela grande unidade militar, foi influenciada nos seus alicerces mais profundos, gerando posturas que alteraram comportamentos e atitudes. É esta soldadura que não tem sido estudada em profundidade, nem tem sido compreendida na sua plenitude. Sobre ela vamos fazer incidir os nossos esforços na tentativa de se perceber como, mais do que a beligerância, o CEP ele mesmo, na medida em que foi a parte visível do intervencionismo, foi motor e viatura de um complexo processo militar e político.» (p. 24-25).

É preciso mais? António José Telo quer negar o conteúdo da minha obra e, para fazê-lo, tem de inventar um artifício que traga uma suposta novidade ao estudo da beligerância portuguesa. E qual é esse artifício?
«-A inserção da Grande Guerra (1914-1918) na guerra civil intermitente portuguesa (1908-1927), com duas revoluções vitoriosas a nível nacional (1915 e 1917), múltiplas insurreições e pronunciamentos (em todos os anos) e uma guerra civil oficial no fim do conflito global (1919)».

Em apontamentos anteriores já desmontámos, na generalidade, esta argumentação. Mas será que ela é assim tão inovadora, para além da designação, um tanto surrealista, de guerra civil intermitente?
Vejamos o que nós dissemos na nossa obra já referida:

«A intervenção de Portugal passou a impor-se por várias razões, mas também para não ser um Estado periférico e fora do contexto, sujeito à vontade de todos os que haviam sofrido os horrores do conflito. A tradicional neutralidade novecentista — só alterada para um estatuto de ambiguidade aquando da guerra anglo-boer — tinha de ser abandonada quer por razões de ordem interna quer por motivos de ordem externa, tal como há quase vinte anos demonstrámos, pela primeira vez em Portugal.
Para todos quantos souberam compreender a necessidade da beligerância — uma beligerância no teatro de guerra europeu — foram claras as subtilezas dessa política que pouco tinha a ver com o efectivo perigo alemão. No entanto, para muitos — na época e ainda agora — gerou-se-lhes uma neblina intelectual que os impossibilitou de perceber como a limitação das operações militares aos teatros de guerra africanos ou mesmo a neutralidade era nefasta e inoportuna à política de desenvolvimento e autonomia que os intervencionistas desejavam.
Podemos dizer, sem receio de errar, que a guerra na Europa condicionou a política nacional portuguesa durante os quatro anos que durou; condicionou-a na vertente interna por causa da vertente externa e vice-versa. À instabilidade provocada pelas incursões monárquicas e às várias conspirações que os simpatizantes do Rei desenvolveram entre 1911 e 1919 devem juntar-se as revoluções que a entrada ou não na guerra geraram, pondo republicanos contra republicanos. De facto, a queda do Governo Azevedo Coutinho, em 1914, e a chamada do general Pimenta de Castro para formar Ministério, mais não foi do que um golpe palaciano conduzido pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga, para evitar a ultimação dos preparativos de uma mobilização posta em marcha para satisfazer os anseios dos intervencionistas. Do mesmo modo, a revolução de 14 de Maio de 1915, que derrubou o velho general alcandorado a primeiro ditador no regime republicano, teve como objectivo principal abrir as portas da governação aos intervencionistas que, graças a manobras diplomáticas bem conduzidas, viram realizado o seu desejo em Março de 1916. A constituição do Governo de União Sagrada e toda a oposição que se lhe seguiu teve sempre como pano de fundo a beligerância. A tentativa revolucionária de 13 de Dezembro de 1916, conduzida por Machado Santos, fez-se, uma vez mais, para evitar a marcha das tropas para França. Um ano depois, o golpe militar de Sidónio Pais foi ainda, e de novo, uma tentativa de mudar o curso da política de guerra traçada e executada pelos Governos intervencionistas. O próprio assassinato de Sidónio Pais, em Dezembro de 1918, embora posterior ao armistício, julgamos, pode ainda inscrever-se no rescaldo da política belicista.
Se a instabilidade política foi fruto da guerra, tendo-a ou não como pretexto, a instabilidade social foi resultado directo do conflito que assolava a Europa e se estendeu a todo o mundo. Aliás, como à frente se verá, uma das principais características deste grande confronto bélico foi a sua totalização, ou seja, o levar a guerra, ainda que de uma maneira diferente, dos campos de batalha para a retaguarda, afectando de modo indelével as populações civis; a guerra já não era só sentida pelos combatentes e pelos habitantes das áreas onde se desenrolavam os combates, mas por todos, de modo a quebrar o moral daqueles a quem competia bater-se em campanha. Neste conflito, deliberadamente, vão aproveitar-se as facilidades tecnológicas dos contactos rápidos dos combatentes com os civis para desenvolver, talvez pela primeira vez, a propaganda como arma de desmoralização. Vai haver uma interpenetração da frente com a retaguarda de modo a todas as angústias e todas as dificuldades afectarem os que envergavam uniforme e os que o não vestiam. O número de homens empenhados na guerra vai ser de tal monta que, pela primeira vez também, as mulheres são chamadas a trabalhar em fábricas usualmente destinadas a operários do sexo masculino. A desconformidade económica com o desregulamento dos circuitos de compra e venda tornou-se o elemento fundamental para corroer as retaguardas. A guerra submarina, impedindo a livre circulação dos produtos mais essenciais às populações, foi usada pela Alemanha até à exaustão. Nada nem ninguém ficou imune aos efeitos da guerra.
Foi no meio desta situação tendencialmente caótica que os intervencionistas portugueses pressentiram a possibilidade de, ao levar para o conflito bélico o país, entrosar a política nacional com a política dos Aliados, minorando alguns dos efeitos sociais e económicos e conseguindo uma aceitação respeitável no concerto das nações. Por arrastamento viriam os benefícios económicos e, até, culturais.

A beligerância nacional foi, assim, um factor que, conseguindo ou não alcançar no todo ou na parte alguns dos objectivos dos intervencionistas, não só condicionou a condução política durante os quatro anos de guerra — Agosto de 1914 a Novembro de 1918 — como se prolongou, nos seus efeitos, muito para além do final do conflito. Não será exagero se dissermos que o golpe militar de 28 de Maio de 1926 foi, embora já de forma remota, uma sequela da beligerância portuguesa. Com efeito, a entrada na guerra veio dar, no plano interno, uma projecção, visibilidade e importância ao Exército e à Armada que não faziam parte dos planos dos políticos republicanos em 1910. Essa projecção e importância arrastaram-se muito tempo ainda pela ditadura e Estado Novo, julgando nós que se pode considerar já sem relevância significativa quando o ministro Santos Costa executou a reforma do Exército, em 1937.» (p. 18-21).

Quer-se mais para compreender que António José Telo, usando o pano de fundo onde eu trabalhei e expliquei, em grande parte, as razões da beligerância, limitou-se a tentar fazer crer que os anos da 1.ª República foram de guerra civil intermitente — conceito que não compreendo e que nega a luta política ou reduz a luta política a simples momentos eleitorais altamente controlados como os imaginou e pôs em execução Oliveira Salazar e toda a camarilha que o rodeava e sustentava?!



António Telo e Marquês de Sousa acabam mostrando que não são historiadores, mas vendedores de verdades previamente fabricadas, não demonstradas e vestidas com o uniforme da propaganda política.

quinta-feira, 21 de abril de 2016

O CEP, imposição portuguesa


António José Telo continua a ser convidado para fazer comunicações em agremiações de âmbito científico e, parece, estende-se-lhe uma passadeira vermelha para que possa continuar a vender ou, às vezes, impingir, as suas interpretações sobre a beligerância nacional, na Grande Guerra. Ele impôs-se o direito e a obrigação de efectuar uma outra leitura dos acontecimentos de há cem anos, nem que para tal tenha de fazer afirmações que rondam a mentira e sempre a distorção dos factos. É o caso, logo no primeiro parágrafo do 7.º Erro, intitulado «Foi a Grã-Bretanha que pediu a formação do CEP», da comunicação, que venho comentando, levada a efeito no XXIII colóquio de História Militar, organizado pela Comissão Portuguesa de História Militar, que lhe deu uma tribuna privilegiada para perorar sobre Portugal e a Grande Guerra.

Diz assim o historiador Telo:
«A outra mentira da visão tradicional portuguesa é a de querer fazer acreditar que foi a GB que pediu a criação do CEP, donde se pode inferir que se houve algum erro de avaliação… ele foi britânico, por ter exigido demasiado.»
Isto é falso! Tão falso que são os factos a desmentir a afirmação. Basta pensar que a chamada Divisão de Instrução foi criada em Tancos ainda se mantinham conversações em Londres sobre a contribuição militar portuguesa no teatro de guerra europeu.
António José Telo, como é seu costume sobranceiro, tem feito tábua rasa das minhas afirmações em Do Intervencionismo ao Sidonismo, e tenta convencer-nos das suas razões. Eu disse-o, em 1990, — Portugal e a Primeira Grande Guerra. Os Objectivos Políticos e o Esboço da Estratégia Nacional. 1914 – 1916 — e reforcei em 2010: a beligerância nacional, bem como o envio do Corpo Expedicionário Português (CEP) para França resultaram de uma manobra diplomática portuguesa impositiva perante a Grã-Bretanha. E nem se compreendia que não fosse assim se se quisesse perceber que a beligerância visava um fim subtil: forçar a aceitação de Portugal como parceiro igual e não menor da Inglaterra no areópago das Nações. E é neste erro que António Telo continua a laborar e a induzir quem o lê e ouve, porque ele olha a beligerância portuguesa à luz dos interesses britânicos e não dos interesses nacionais. Ele é hoje um outro Brito Camacho ou um Machado Santos de há cem anos.

Quando tenta explicar o tal 7.º Erro, por falta de alternativa e porque factos são factos, Telo vê-se obrigado a referir o que realmente se passou, ou seja, uma manobra diplomática excelentemente executada por Afonso Costa, tendo tido, às vezes sem saber, o apoio da França. O ministro português, dito em linguagem pouco académica, encostou às cordas o Foreign Office e o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, ganhando a batalha diplomática que a si mesmo se havia imposto e imposto a Londres: fazer aceitar um contingente militar português no teatro de guerra europeu, único local onde não passaria despercebida a beligerância nacional e onde não poderia ser confundida com mera defesa de património colonial e, assim, apoucada aquando da conferência da paz.
Telo, com subtileza não isenta de maldade, confunde dois elementos que convém serem confundidos: a responsabilidade de Londres na redução da eficácia do CEP com a exigência demasiada da Grã-Bretanha!
Do que se culpa, e bem, a Inglaterra, é do facto de, em Setembro, depois de ter posto em França o CEP, ter cortado o transporte de mais tropas nacionais para França. Mas Telo quer desviar as atenções dos Portugueses de hoje dessa real, dessa verdadeira culpa britânica! E é culpa, porque foi esse o processo encontrado pela Inglaterra para liquidar a ofensiva diplomática portuguesa! Deixar morrer o CEP em França era, na perspectiva britânica, a forma de deixar bem relevante para a posteridade a teimosia e a incapacidade de Portugal! Claro que, com historiadores como António José Telo, o objectivo inglês de há cem anos é alcançado hoje! Claro que com papalvos que convidam o historiador António José Telo para bolsar veneno contra aqueles que, há cem anos, lutaram pela dignidade internacional de Portugal, os objectivos ingleses acabam sendo alcançados! Claro que, estejam onde estiverem, Afonso Costa, Norton de Matos, João Chagas, Roberto Baptista, Ferreira Martins e, até Ferreira do Amaral, para não citar Augusto de Casimiro ou, Jaime Cortesão, reviram-se dos pés para a cabeça ao saberem das explicações de António José Telo e jamais perdoarão a quem lhe dá tribuna para bolsar falsidades ou distorções sobre o que realmente se passou.

A verdade é que o CEP foi imposto aos britânicos, mas essa imposição teve em vista um valor mais alto que está malevolamente a ser esquecido por António José Telo, quando até o deposto rei D. Manuel II mandou que os monárquicos fossem beligerantes para defenderem o interesse nacional português! E isto Telo não o diz! Esconde, deturpa, escamoteia, para que a sua leitura dos acontecimentos possa ser aquela que prevalecerá nos próximos cem anos, confundindo os investigadores de 2116, que terão dificuldade em compreender quem afinal estava a dizer a verdade histórica.


António José Telo não faz história! Continua a fazer propaganda como a faziam os não intervencionistas de 1916!!!

sábado, 2 de abril de 2016

As Forças Armadas Portuguesas e a Grande Guerra


Quando se pretende desqualificar seja o que for, tudo serve para o fazer. Basta que se acentuem os aspectos negativos e se omitam os positivos, não se mencionem os lados capazes de atenuar a negritude de um quadro que se pretende de breu.
É esta a posição do historiador António José Telo ao abordar aquele que designou por «6.º Erro» na comunicação de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em 2014, dando-lhe o título «Portugal tem umas Forças Armadas semelhantes às outras».
Começa logo por afirmar: «Um dos maiores erros da visão tradicional é a de tratar a instituição militar nacional como sendo semelhante à dos restantes beligerantes, distinguindo-se deles somente pela dimensão.»

Não sei onde foi desencantar esta visão tradicional! O general Luís Augusto Ferreira Martins, o primeiro, na ordem cronológica, dos historiadores da Grande Guerra, não a dá, e ele sabia do que falava, pois foi o subchefe do estado-maior do Corpo Expedicionário Português (CEP) em França. Se António José Telo tivesse passado uma vista de olhos pelos jornais portugueses, em especial de Lisboa, publicados logo após o início do conflito, teria topado com algumas polémicas entre oficiais do Exército, tendo como base este tema. Toda a gente sabia que Portugal estava dotado de um Exército mal preparado e mal equipado. Mas isso não era erro da República, ainda que Telo lhe queira transferir responsabilidades, exaltando a reforma militar do reinado de D. Carlos.

Para que os leitores se possam situar, torna-se necessário esclarecer o que era o Exército nos últimos tempos da Monarquia.
Vivendo uma longa paz na Europa, os Governos de Portugal fizeram o que sempre fazem: reduziram ao máximo as despesas com as Forças Armadas até as tornarem numa organização quase inútil, servindo para impressionar internamente pela força e pelo brilho das fardas em ocasiões de festejos. O modelo de recrutamento levava a que só os pobres, desvalidos e analfabetos cumprissem serviço militar obrigatório. A oficialidade dividia-se entre aqueles que só pretendiam um emprego (mal) remunerado e uns poucos que aspiravam seguir uma carreira de serviço à Pátria. E nem se julgue que todos aqueles oficiais que estiveram nas colónias africanas, depois de 1885 — Conferência de Berlim e dever de ocupação efectiva —, corresponderam aos que o fizeram por desvelo castrense! Ofereciam-se para o serviço colonial, porque, de acordo com o preceito da época, uma vez na colónia, eram graduados no posto imediatamente a seguir e, assim, passavam a auferir uns cobres adicionais.
O serviço militar era desempenhado pelas praças — convém recordar que os sargentos, então, eram praças de pré — em regime de quase profissionalismo, pois poderiam prolongar a sua permanência nas fileiras através de sucessivos contratos.
A valia táctica deste Exército só era grande em África, porque tinha de se defrontar com hordas de combatentes indígenas muito mal armadas. Foi à superioridade em armamento de fraquíssima qualidade que se ficaram a dever as retumbantes vitórias tão apregoadas na historiografia do Estado Novo. A verdade nunca foi contada! E continua a ser nessa falta de verdade que António José Telo faz assentar toda a sua argumentação eivada de omissões.
Vejamo-las, pois.

Quer partir de um pressuposto: os políticos republicanos, em especial a ala mais radical, tinham em mente a destruição da valia do Exército monárquico levada a cabo de duas formas: uma, a partir de um núcleo de oficiais identificados com o radicalismo, reformando todo o aparelho militar e dando-lhe uma eficácia nacional através da obrigação de prestação de serviço nas fileiras, abandonando-se o modelo semi-permanente e adoptando a conscrição nacional por tempo reduzido a fim de libertar a mão-de-obra para as tarefas úteis; outra, partidarizando politicamente as Forças Armadas e infiltrando-as com civis armados pertencentes a organizações revolucionárias. No essencial, é assim que se pode sintetizar a tese de António Telo.

É absolutamente verdade que foi feita uma reforma do Exército em 1911, mas está muito longe de continuar a ser verdade que ela se destinasse a «[…] neutralizar o potencial perigo do corpo de oficiais.» Só partindo de um pressuposto ignorante, falso ou carregado de preconceitos históricos e políticos se pode admitir a afirmação anterior. Nunca o Exército do final da Monarquia foi táctica ou estrategicamente valioso, a não ser nas condições africanas que referi. Só se aceita o contrário se se acreditar na propaganda do Estado Novo feita à volta das campanhas de pacificação. Houve rasgos de coragem individual, mas, para além de pontuais, deveram-se a circunstâncias específicas mal contadas. E, para aferir do que afirmo, basta ler, por exemplo, António Enes, que nos deixa o retrato exacto das incapacidades materiais e financeiras de toda a ordem para poder levar a cabo a tão badalada epopeia de Mouzinho de Albuquerque!
A reforma de 1911 visava, como atrás deixei dito, levar ao cumprimento do serviço militar, sem excepções, todos os jovens em idade do cumprimento das obrigações de cidadania, mas reduzindo a sua permanência nas fileiras ao tempo mínimo para aprenderem a manobra táctica essencial; depois, durante sete anos, na última quinzena de Setembro, todos os disponíveis eram chamados ao cumprimento das designadas escolas de repetição onde se refrescavam os conhecimentos aprendidos nas respectivas recrutas. Claro que, nestas circunstâncias, e como era lógico, a imensa e inútil quantidade de oficiais do quadro permanente iria, a prazo, perder significado, restando somente os essenciais para fazerem arrancar a mobilização e os programas de instrução. Ora, aqui está, em poucas palavras, a reforma que António Telo, em congeminações conspiratórias, condena por se destinar a destruir o inútil Exército herdado da Monarquia.
Quanto à infiltração de revolucionários civis nos quartéis, em determinados momentos de perigo para o novo regime, ela não assume as proporções imaginadas por Telo, todavia, existe em consequência da lógica revolucionária da implantação da República: deveu-se mais à acção dos civis carbonários do que à dos militares e oficiais. Claro que, para António Telo desejoso de condenar em vez de explicar, a partidarização do corpo de oficiais se fica a dever a um movimento de reacção às reformas revolucionárias da República e não, como me parece lógico e evidente, à frustração causada pelas mudanças republicanas que iriam pôr a trabalhar e a ganhar treino efectivo uma cambada de inúteis cabides de farda!

Nunca se acreditou que o Exército da República tivesse as capacidades militares dos seus congéneres europeus. No Arquivo Histórico Militar há abundante informação sobre as carências entre 1914 e 1917. Nunca se acreditou, no seio dos políticos intervencionistas, que o contributo militar português fosse de molde a ter peso na condução da guerra na Europa! Só alguém completamente fora da realidade poderia acreditar em tal. O importante — e só por um acto de declarada inteligência se pode compreender este argumento — não eram vitórias militares; o importante era estar no teatro de operações da Europa para garantir uma acção diplomática presente, na época, e, futura, no final do conflito! Quem não percebe isto não percebe a razão da beligerância nacional! Pelos vistos, o historiador António José Telo não percebe e, para além de não perceber as razões da época, anda a fazer interpretações que estão claramente enfeudadas à perspectiva reaccionária de então. Assim ele não explica o que se passou, mas antes o que se deveria ter passado. E História não é isso!

sexta-feira, 1 de abril de 2016

A requisição dos navios alemães: verdades e omissões


Uma ou duas omissões, quando se conta uma história, constitui uma excelente forma de alterar a realidade dos factos e fazer crer naquilo que se pretende demonstrar como verdade.
Vem isto a propósito dos tais «Erros» que António José Telo, na comunicação de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em Novembro de 2014, inventariou — arriscava-me a dizer, imaginou existirem — naquilo que chamou a versão oficial da História da beligerância portuguesa. O quinto «Erro» resolveu titulá-lo da seguinte forma: «É a Grã-Bretanha que provoca a apreensão dos navios».
Como é que o historiador Telo o descreve para mostrar a verdade da sua afirmação?

Dada a carência de créditos e de divisas para o comércio internacional e o começo da fome interna, o Governo de Lisboa pediu um empréstimo de dois milhões de libras a Londres. Por seu turno o ministro representante de Portugal em Paris faz saber ao Governo de França as dificuldades financeiras de Portugal. Paris propõe que Lisboa requisite os navios alemães e austríacos e os alugue à França ao mesmo tempo que informa o Governo de Londres desta acção. Face a isto, António José Telo diz textualmente: «Perante a atitude de força [destaque da minha autoria] francesa a alternativa britânica é muito simples: ou deixa que o assunto passe para as mãos de Paris, o que significa que Portugal entra na guerra apoiado pela França e, possivelmente, isto representaria o fim da secular Aliança [destaque da minha autoria]; ou assume ela a chefia do processo.» Deixemos esta frase a amadurecer e continuemos.
A Inglaterra opõe-se à jogada francesa e, ainda segundo Telo, Londres faz saber que Lisboa deve requisitar os navios para serem usados pela Grã-Bretanha e conclui da seguinte forma: «Do ponto de vista nacional o que desencadeou o processo foi o pedido de ajuda financeira apresentado por razões partidárias [destaque da minha autoria] (manter o Governo no poder); do ponto de vista internacional o que desencadeou o pedido britânico foi mais uma acção de força da França [destaque da minha autoria].»
Ora vamos lá desmontar esta história bastante incompleta, cheia de omissões e segundos sentidos.

Comecemos por Portugal e a França.
Em Portugal, já o disse, mas repito, o Governo Afonso Costa saído do golpe militar de 14 de Maio de 1915, tinha um objectivo: levar o país à beligerância para se libertar da pecha internacional de ser um Estado tutelado pela Grã-Bretanha e, por outro lado, mas consequência dessa tutela, ter lugar à mesa da negociação de paz, quando ela chegasse, para garantir a integridade territorial em África e a independência na Península, pois nada garantia e tudo apontava para que até o fim das hostilidades se fizesse à custa de compensações coloniais para a Alemanha e, ou, a Bélgica resultantes do esbulho de Angola e Moçambique, pelo menos.

É desta baliza, deste cenário, que se tem de partir para perceber a beligerância portuguesa e a necessidade sentida por Afonso Costa de ser profundamente revolucionário na condução da política externa, tal como o havia já sido na política interna, quer abatendo as forças mais reaccionárias e capazes de travar o processo de mudança de caminho para a modernidade das mentalidades — o clero da Igreja Católica — quer saneando financeiramente o cancro orçamental herdado do século XIX.
Ora, o pedido de empréstimo à Inglaterra, mesmo que tratando-se, como efectivamente se tratou, de um negócio para não ter publicidade, destinava-se a fazer face, fundamentalmente, a uma série de despesas com o reequipamento do Exército e da Armada e nada tinha a ver com razões partidárias, que só obtusamente podem ter lugar na mente de alguém na actualidade presente! Eram razões de Estado!
Razões de Estado, repito, porque é algo que António Telo parece só perceber se se tratar da Inglaterra! Para ele, as razões de Estado representadas pelo partido democrático transformam-se em razões partidárias, exactamente porque põe o enfoque das medidas políticas na defesa dos interesses ingleses e nunca no do interesse nacional português.

António Telo, na sua enfatuada comunicação, parecendo ter descoberto alguma coisa de novo, não leva em conta o que John Vincent-Smith desvendou há quarenta anos! E menos em conta leva o que A. H. de Oliveira Marques deu a conhecer a todos os historiadores desta época quando publicou as actas das reuniões do Gabinete ministerial, também em data muito distante, para não dizer que desconheceu em absoluto o que eu escrevi, em 1990, sobre este assunto. Para ele, tudo isto é zero! Ou, talvez, História sem fundamento, porque simplesmente foi feita no sentido da História oficial, que ele não só nega como combate!

Mas que raio disseram estes historiadores? Pois bem, Vincent-Smith desvenda que o ministro dos negócios estrangeiros britânico condicionou o terceiro milhão de libras — e não dois como Telo afirma — à requisição dos navios inimigos recolhidos nos portos portugueses!!
Ora, caros leitores, que nome se pode dar a esta atitude de Sir Edward Grey? Talvez chantagem, não?! Talvez a prova provada de como Londres fazia política com Lisboa! Mas, mais do que julgar a atitude do máximo responsável pelo Foreign Office, interessa perceber que:
a) O Governo britânico empurrou o Governo de Lisboa para a requisição dos navios;
b) O Governo de Lisboa soube movimentar-se muito bem, aproveitando as necessidades britânicas, para conseguir o seu objectivo diplomático e nacional;
c) O Governo de Londres só agiu como agiu, porque foi forçado pelo Gabinete de Guerra, chefiado por Lord Kitchener, a invocar a Aliança para que se requisitassem os navios.
Não sou eu quem faz esta afirmação! É Vincent-Smith, que Telo ou desconhece ou despreza propositadamente! Eu limitei-me, em 1990, a juntar as pontas, através de ler com olhos atentos as actas do Governo Afonso Costa publicadas por Oliveira Marques e disso dei notícia pública, em livro saído do prelo em 2001 com o título O Fim da Ambiguidade, embora já estivesse à consulta pública, na Biblioteca Nacional, há dez anos, a minha tese de mestrado em Estratégia!

Voltemos ao texto de António José Telo.
Como destaquei em cima, ele próprio deixa clara a sua posição ideológica perante este facto: «[…] Portugal entra na guerra apoiado pela França e, possivelmente, isto representaria o fim da secular Aliança […]» e, mais à frente, «[…] o que desencadeou o pedido britânico foi mais uma acção de força da França».
Telo, para além de condenar a política externa portuguesa, condena a diplomacia francesa, que se deveria subordinar, segundo o que deixa transparecer, ao interesse e aos ditames da política inglesa! Telo está a fazer a História do interesse nacional britânico ou a História da participação de Portugal na Grande Guerra? Ele retira a possibilidade da França e Portugal refazerem a sua política externa em função de interesses que, em dado momento, convergem no mesmo sentido: quem tinha o território invadido pela Alemanha era a França e quem queria libertar-se de uma aliança que esmagava era Portugal! António Telo não concede a Paris e a Lisboa a liberdade de se movimentarem sem ser sob a tutela de Londres! É que, para a França, todo o auxílio em homens e armamento era fundamental, mas, para Telo, mais fundamental era cumprirem-se os interesses britânicos!

O leitor percebe como, com omissões e distorções, se pode alterar a História? Como o que era lógico, transparente e evidente se transforma em algo obscuro, mal-intencionado e, até, quase condenável? E porquê? Porque se comete o erro — esse sim, muito grave — do anacronismo histórico!

quarta-feira, 23 de março de 2016

E o interesse nacional português?


É extraordinário como se pode, com os mesmos factos, os mesmos documentos, os mesmos acontecimentos contar e, acima de tudo, interpretar coisas diferentes, por simples omissão!

Se o historiador António José Telo, em vez de tentar condenar, na actualidade, a beligerância portuguesa de há cem anos, procurasse a razão profunda dessa mesma beligerância, ao invés de a colocar como mera teimosia de um partido político e do seu líder, talvez fizesse mais luz sobre a verdade do que, ao pleitear o passado, condená-la!
Vem isto a propósito do «4.º Erro» por ele indicado na comunicação, que continuamos a seguir, feita no acto de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em Novembro de 2014, intitulado «Pensar numa França apagada perante uma Grã-Bretanha activa».

Porque Telo continua teimosamente a defender a sua tese, ou seja, que o interesse nacional português, em 1914, devia ser, em primeiro lugar, definido pela Grã-Bretanha, e, em segundo lugar, defendido pelos ditames estabelecidos no Foreign Office, volta à carga, agora com a situação concreta em que Londres se viu confrontada, em Setembro de 1914, quando a França pediu auxílio a Portugal, configurado na cedência de armamento.
Para que não restem dúvidas e se perceba o que António Telo está a fazer à historiografia nacional, transcrevo os termos que usa nessa comunicação — documento supostamente escrito para o futuro e norteador da sua posição sobre o assunto: «A primeira tentativa, surge logo em Setembro de 1914, quando Paris, sem o prévio conhecimento de Londres [sublinhado da minha autoria] pede a Lisboa a cedência de peças de artilharia […]»!
Para o historiador António José Telo já não era só Portugal que se deveria submeter à vontade da Grã-Bretanha, mas também a França! Isto é simplesmente inaudito! Claro que o argumento a utilizar para justificar a sua afirmação é o da não existência de aliança nenhuma entre Portugal e a França! Mas era necessário que houvesse? E não poderia estar neste pedido o esboço de uma nova aliança de Portugal com um outro aliado? Portugal era propriedade de Londres?

O perigo desta postura historiográfica de António José Telo não está só na sua interpretação esdrúxula da História recente de Portugal e da História da 1.ª República. O verdadeiro perigo está no facto de ele ser professor de História na Academia Militar e, assim, passar para os futuros oficiais do Exército uma interpretação fundamentalmente ideológica e marcadamente identificada com uma postura internacional pouco ou nada dignificante do brio que deve presidir à definição do interesse nacional português.

Mas, voltando aos factos, Telo não traz nada de novo, pois, já em 1990, eu na minha tese de mestrado, apresentada no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, chamava a atenção para o papel que poderia ter tido — e teve, efectivamente — João Chagas, ministro de Portugal em Paris e, em Setembro de 1914, em Bordéus, no pedido de armamento feito pela França. (Mais tarde vim a clarear essa minha hipótese em trabalho bem mais fundamentado). Esse pedido inseria-se numa política de elucidação da ambiguidade em que Londres obrigara Portugal a ficar perante o mundo e, particularmente, perante os combatentes: nem neutral — para satisfazer todos os interesses da Grã-Bretanha — nem beligerante — para não atrapalhar os interesses britânicos. E é esta indefinição que António José Telo considera que se deveria ter adopatado! Mas a História não se faz com se; a História faz-se com o que foi; e é a partir do que foi que ela deve ser explicada. Explicada para se perceber por que é que foi e como foi! Não é explicá-la como foi para, logo depois, a condenar!

Houve um evidente desfasamento entre a possibilidade de fornecer o armamento pedido pelos Franceses e a imediata mobilização de uma Divisão Auxiliar. Mandar aquela grande unidade militar para a frente ocidental ao mesmo tempo que se despachavam as peças de artilharia requeridas pela França, teria sido o ideal! Mas a intriga, o medo, a incompreensão e, mais do que tudo, a inépcia impuseram-se de imediato. E todos estes defeitos Telo enaltece, porque, no fundo, favoreciam a Grã-Bretanha e os seus interesses!
Não julgue o leitor tratar-se de um exagero meu! Repare nesta passagem da autoria do historiador Telo: «O jogo britânico é muito hábil, como é normal [sublinhado da minha autoria], e acaba por ser bem-sucedido, como é igualmente normal [sublinhado da minha autoria]. O que Londres faz é fingir apoiar o pedido de França, mas sempre salientando que só devem ser enviadas as peças sem os homens.» Contudo, vai mais longe e note-se a simpatia, a apologia, o encanto que perpassam das palavras de Telo, professor de História da Academia Militar Portuguesa: «Ao mesmo tempo a Grã-Bretanha incentiva os anti-guerristas portugueses a impedirem a beligerância forçada [qual é o interesse nacional que está aqui a ser enaltecido pelo historiador Telo: o de Portugal — para deixar de ser tutelado pela velha aliada — ou o da Grã-Bretanha?], nomeadamente passando os seus ultra-secretos documentos diplomáticos ao chefe da oposição [sublinhado da minha autoria] (o anti-guerrista Brito Camacho). Tal como Londres esperava, Brito Camacho escreve uma série de artigos no seu jornal (A Luta) onde denuncia a mentira do Governo a partir dos documentos britânicos.»

O leitor vislumbra bem a interpretação de António José Telo e a sua intenção de reescrever a História de Portugal e a Grande Guerra? Percebe que ele não compreende e não aceita, passados cem anos, que houve uma estratégia nacional conduzida pelo partido beligerante para se desligar desta interferência de Londres nos negócios internos portugueses?! Percebe que quem está a fazer e a continuar a prática de uma História distorcida pela obcecação partidária é este professor de futuros oficiais do Exército?! Percebe?! Percebe que a influência nas mentes daqueles a quem um dia pode ser pedido que, por razões de dignidade soberana, se entre numa guerra e se lembrem das palavras do seu mestre, que escreveu: «O resultado é que em fins de 1914 nasce em Portugal um amplo movimento anti-guerrista, principalmente a partir das Forças Armadas [sublinhado meu], que interpreta o sentimento maioritário da Nação» possa ser o rastilho da desobediência militar? Percebe o leitor a gravidade de tudo isto?!

Ora, pergunto eu:
— Quantas vezes o sentimento maioritário é coincidente com o interesse nacional num Estado onde 75% da população é analfabeta e completamente dominada pelo obscurantismo clerical da Igreja Católica e, por ser ignaro, é dominado pela vontade dos caciques locais?
É que quando o historiador e professor de futuros oficiais do Exército António José Telo omite esta situação particular está a adulterar a História, tal como se fez durante o regime ditatorial do Estado Novo, de modo a distorcer mentes e raciocínios. Ele não conta a História toda! E, mais do que tudo, faz crer que o interesse nacional é definido pelo Povo quando, sabemo-lo desde o tratado de Vestefália, ele é definido por quem representa essa entidade abstrata designada por Estado. Ora, a luta de Brito Camacho, da Grã-Bretanha e de todos os que não queriam a beligerância representava a satisfação de um interesse nacional que não era o nosso, o de Portugal enquanto Estado soberano, independente e com igual valor no plano internacional ao de todos os restantes Estados.

Cuidado Senhores ministros, senhores generais, senhores decisores políticos, porque o ensino é uma mina, uma granada de espoleta retardada e quem o dominar domina o futuro!

sexta-feira, 18 de março de 2016

A beligerância e o pedido britânico


É indiscutível que a beligerância portuguesa resultou de um pedido da Grã-Bretanha para Portugal requisitar os navios alemães e austríacos surtos em portos nacionais, desde o começo da guerra, ao abrigo de uma neutralidade que não existia formalmente, pois bastas vezes foi ferida por solicitações — quase exigências — feitas por Londres a Lisboa, capazes de tornar beligerante o Aliado.
Claro, pode questionar-se se este pedido foi ou não forçado pelo Governo português e se a beligerância dele resultante foi ou não provocada pela vontade política de Portugal. E, se colocarmos deste modo singelo a questão, a resposta às duas perguntas só pode ser afirmativa. Todavia, ficar por aqui, no que toca à beligerância nacional e à sua motivação, é tão primário que jamais qualquer historiador, desejoso de contar e explicar a verdade, o faria. Esta explicação é a que se dá a níveis primários do conhecimento; nunca a que deve figurar numa obra dedicada à participação de Portugal na Grande Guerra. Mas, António José Telo, na comunicação de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em 2014, parece desejoso de conter a justificação a este patamar e, por isso, afirma ser esse o terceiro erro da historiografia recente e oficial da participação na Grande Guerra — «Pensar que a beligerância resulta de um pedido do Aliado»! Naturalmente, entrou em pormenores justificativos da sua tomada de posição.

Onde se centra, então, toda a explicação do erro atribuído por Telo à historiografia oficial e recente?
Para começar, é ele quem cai no mais primário e elementar erro de análise: coloca a decisão da beligerância portuguesa sempre fora de Portugal e nunca dentro do país e, quando vagamente se refere à situação interna centraliza-a na disputa entre aqueles que designa por guerristas e anti-guerristas.
É primário — quase podendo denunciar nele a existência do sentimento anti-História e pró-ideologia que diz nortear alguns dos historiadores actuais — não perceber ou tentar levar a que não se perceba ser a opção de beligerância um assunto essencialmente interno e só externo se existir uma concordância interna. A título de mero exemplo, e para que se perceba o alcance do meu ponto de vista, leve-se em atenção a atitude de Oliveira Salazar, na 2.ª Guerra Mundial, quando estava a ser pressionado, pelo Governo britânico, a ceder bases aéreas nos Açores, só optando por fazê-lo quando lhe pareceu oportuno e conveniente ao interesse português. E disto António José Telo sabe bastante! Acresce que nem se pode dizer ser anacrónico o conceito de interesse nacional, pois bastas vezes foi utilizado em discursos parlamentares por Afonso Costa. Podia, até, em 1914, não ser conhecido ou verbalizado o conceito de Estratégia Nacional, no entanto, ele é um daqueles que pré-existe ao seu enunciado, pois está intimamente ligado às movimentações políticas de todo e qualquer governo, no plano interno e externo, para garantir os fins do Estado.

António José Telo vai, afinal, concentrar a sua argumentação demonstrativa do erro que tão originalmente enuncia na satisfação dos interesses nacionais da Grã-Bretanha e da França! Não tem pejo de qualquer natureza em escrever: «Significa isto que a beligerância portuguesa não se decide meramente entre guerristas e anti-guerristas nacionais. Ela decide-se sobretudo numa luta diplomática entre a Grã-Bretanha e a França, a primeira apoiando os aliados anti-guerristas e a segunda incentivando os seus aliados guerristas.»
Não passa na cabeça de António Telo que possa ser exactamente o contrário disto que afirma? Ou seja, os intervencionistas buscarem apoios junto dos Franceses e os não intervencionistas procurarem-nos juntos dos Britânicos e, até, entre os Alemães?
Há documentação que prova bons contactos de monárquicos com autoridades germânicas radicadas em Espanha depois de 1916.
A ânsia de ver a beligerância como uma obcecação de Afonso Costa leva António José Telo a desprezar indícios claros da verdade histórica!

Não ponho em dúvida que no War Office as tropas portuguesas fossem olhadas como pouco valiosas do ponto de vista táctico. Todavia, embora sem conhecimento dessa documentação, quase aposto, ela é datada de 1914 ou início de 1915, quando se previa ainda a hipótese de o conflito militar ter uma curta duração temporal. Mas António Telo esquece de referir que o Governo de Sua Majestade Britânica, desprezando o valor militar dos soldados portugueses, insistia junto de Lisboa para que fosse autorizado o recrutamento de trabalhadores nacionais para substituir os seus operários transformados em soldados! Isto ele não diz! Não diz, porque assim ficava bem evidenciado o papel subalterno que Portugal ocupava junto do Governo de Londres. Era a prevalência do interesse nacional britânico perante o interesse nacional português!
Era desta forma que se dignificava Portugal no concerto aliado? Era assim que a soberania portuguesa se tornava parelha da britânica na ordem externa entre aliados e adversários?

António José Telo parece estar mais interessado em explicar e contar as razões portuguesas, olhando Portugal a partir de Londres e, até, do Quartel-General Britânico em França, usando óculos britânicos, do que dar aos Portugueses de hoje as razões nacionais para a beligerância e, mais ainda, os obstáculos internos e externos que tiveram de ser vencidos para, por momentos, em 1916 e 1917, Portugal ser olhado com a grandeza que lhe cabia de direito por ser um Estado independente e soberano. Grandeza perseguida pelos republicanos radicais, chefiados por Afonso Costa, desde a existência do Governo Provisório da República, entre o final de 1910 e 1911.

quarta-feira, 16 de março de 2016

O erro que não é erro


Na História há aquelas certezas tão certas que, jamais, por se querer alterar a realidade, se consegue distorcer o que efectivamente foi ou aconteceu.

Há muitos anos — já talvez há meio século ou próximo disso — o historiador A. H. de Oliveira Marques escreveu, sem dar grandes explicações, que Portugal tinha entrado na Grande Guerra motivado por fundamentos de carácter interno e externo.
Na segunda metade dos anos 80 do século passado, no cumprimento de uma obrigação académica, resolvi meter mãos à obra e atestar a afirmação do grande mestre sem, todavia, lhe atribuir a importância que tinha, e fora de um contexto exclusivamente histórico, pois que o meu objectivo era demonstrar ter havido uma Estratégia Nacional determinante da entrada de Portugal no conflito. A prova foi entregue em Abril ou Maio de 1990 e a defesa pública foi feita em Janeiro de 1991.
Embora consciente da novidade, não atribuí grande importância ao facto e assim permaneceu dez anos sem ser publicada. Só a tal me decidi quando alguém obteve o grau de doutor em Florença com uma tese cujo tema era exactamente o meu e que, inteligentemente, sem usar as minhas palavras, em boa parte do conteúdo usou as minhas ideias… e, até, os meus erros! Mas esse utilizador das ideias alheias, para além de publicar um livro que ainda agora é muito consultado por quem a estes assuntos se dedica, teve o desplante de, na televisão e em entrevistas a jornais e semanários, reclamar para si a originalidade da ideia e da descoberta… Mas ele sabia do meu trabalho, pois a seu pedido, ofereci-lhe um exemplar.
Porque a entrada de Portugal na Grande Guerra se fez para acabar com um equívoco — o da não beligerância e não neutralidade imposta pela diplomacia britânica aos pressurosos defensores na não intervenção militar portuguesa — e porque o meu livro tinha como fim acabar com outro equívoco — o da originalidade daquele historiador — optei por lhe dar como título principal algo que foge aos motores de busca quando se procura informação sobre Portugal e a Grande Guerra e, assim, o meu volume vai hoje na segunda edição encimado com O Fim da Ambiguidade: A Estratégia Nacional Portuguesa de 1914 a 1916. Melhor seria tê-lo publicado com a designação que lhe atribui academicamente!

E vem tudo isto a propósito de António José Telo dizer, na tal comunicação a que me tenho referido, que o «2.º Erro —[consiste em] Defender que a guerra era só externa». E vai, de novo, cair na argumentação base de que tanto gosta: «A realidade é justamente o contrário: a guerra internacional mistura-se com a guerra civil intermitente e amplia-a.» Repare-se na ousadia, na arrogância histórica, na omnisciência do historiador quando acrescenta: «Do ponto de vista português estamos perante um conflito único e inseparável […]»!
Ora vamos lá perceber vários aspectos que, parece, Telo não quer ver, pois não me ocorre que os desconheça.

A Grande Guerra foi, como mais tarde a veio a definir o general alemão, Erich Ludendorff, a primeira guerra total! E isto quer dizer que o envolvimento da frente de operações se estende à retaguarda. Aliás, este general, logo nas suas memórias, no pós-guerra, na tradução francesa, evidencia aquilo que só António José Telo não quer ver: «L’état d’esprit du pays commandait impérieusemente de agir. Nous avions les meilleures chances de gagner la guerre».
Isto só não compreende quem não quer compreender que a guerra passou a envolver toda a nação. E, sendo verdade para a Alemanha, não é menos verdade para Portugal. Só que, entre nós, o estado de espírito do país estava avesso à acção. Só lendo obtusamente a História de Portugal entre 1914 — até talvez antes, pois já em 1912 Afonso Costa adivinhava o conflito — e 1918 não percebe que a guerra foi o motor de toda a actividade nacional. A guerra e só a guerra. Mas foi-o também nos outros Estados europeus e, ao sê-lo, retira todas as razões a António Telo.

As invocações na época para levar Portugal à beligerância passaram pelo perigo de perder as colónias, perder a independência, defender as pequenas nacionalidades, etc., etc. Basta ler o número da Renascença Portuguesa dedicado à nossa entrada na guerra! Mas tudo isso era mera propaganda, porque a razão fundamental não podia ser anunciada aos quatro ventos: o receio das decisões britânicas quanto a Portugal e, por isso, o desejo de gerar uma condição de paridade soberana.
António José Telo recusa-se a ver isto, adoptando uma postura muito semelhante à de Brito Camacho, incapaz de perceber que Afonso Costa, no seu radicalismo revolucionário buscava para Portugal, no plano externo, uma grandeza que, no plano interno, era sistematicamente boicotada, por ser entendida como o exercício de uma ditadura dos esclarecidos sobre os ignaros.

E mais! É obviamente verdadeiro que Sidónio Pais esteve, desde sempre disposto a fazer o que Londres mandasse para satisfazer a sua vaidade pessoal (Malheiro da Silva retrata-o melhor que ninguém!), mesmo que isso implicasse o desaparecimento do Corpo Expedicionário Português (CEP) na B line, como foi sugerido pelo comandante do Corpo de Exército britânico, na véspera do início da batalha de La Lys. E esta vontade militar britânica vai dar razão ao facto de a guerra ser feita tanto em França como em Lisboa.

A ânsia de protagonismo ou a vontade política de liquidar o que de melhor teve a 1.ª República, o que de mais genuinamente patriótico foi feito naquele período, leva António José Telo a entrar por uma novidade que só existe na sua cabeça. Ele não vê e não compreende o que todos os historiadores já viram e já compreenderam. E o erro que ele diz existir, afinal não existe!

segunda-feira, 14 de março de 2016

A Guerra Civil Intermitente


Para não ter de pensar no gasto conceito de guerra devido a Clausewitz— aliás concebido para situações de conflitos internacionais — poderei socorrer-me de algo mais simples, definindo guerra como uma luta de vontades, na qual se usam armas de destruição, individuais e massivas, envolvendo elevados contingentes de combatentes que se confrontam segundo um método dialéctico quanto ao armamento e quanto à escalada da violência.
Neste conceito, como se compreende, pode incluir-se aquele conflito a que, geralmente, se chama guerra civil, por se travar entre oponentes do mesmo Estado, Nação, clã ou conjunto social e político humano.

Mas não é neste sentido que o historiador António José Telo o utiliza — na minha perspectiva, mal — na comunicação que fez no XXIII Colóquio de História Militar e que teve honras de palestra de encerramento! Utiliza-o sem os contornos científicos que lhe procurei dar em conceito por mim concebido (salvas as influências do todos os autores que ao assunto se dedicaram e os quais fizeram parte dos meus estudos longínquos) pois mistura a simples luta política partidária com atentados assassinos e golpes militares. Depois, e numa tentativa — quanto a mim, vã — espraia-se na demonstração da existência de grupos armados (curiosamente, com grande ênfase nos de natureza republicana e passando de esguelha pelos monárquicos!) vocacionados para alimentarem essa tal guerra civil intermitente.
Claro que não vale a pena perder excessivo tempo a provar que a mistura de António José Telo tem tudo semelhante à célebre e popular sopa da pedra — ou será preferível chamar-lhe sopa da guerra? — e nada, mas mesmo nada, a ver com uma verdadeira guerra civil! Realmente, guerra civil — se tal nome se pode dar ao acontecimento — só houve na 1.ª República quando, num acto de tresloucada rebelião política, Paiva Couceiro fez restaurar a Monarquia durante poucos dias no Norte e circunscrita ao paralelo da Bairrada, com extraordinários espaços geográficos irremediavelmente neutros e outros, sem dúvida, republicanos. Por conseguinte, aquilo que Telo classifica de guerra civil intermitente só existiu, sem intermitências nas quatro semanas de Janeiro e primeiras de Fevereiro de 1919. Tudo o mais não passa de uma mistificação que o historiador faz da História, abonando muito pouco a seu favor e a favor do entendimento que tem da luta política normal em democracias, no final do século XIX e começo do século XX!

Na confecção da salada russa por si tentada para gerar a tal guerra civil intermitente, mete os assassinatos do rei D. Carlos e do Príncipe Real e o de Sidónio Pais em paralelo com os de António Granjo e a tentativa sobre João Chagas sem ter a cautela de analisar caso por caso, pois os contextos são totalmente diferentes.
Não! Explicar é retirar o valor que António Telo quer dar à sua guerra civil!
É que a morte de D. Carlos e D. Luís Filipe surge na sequência de um clima de luta pelo poder por parte dos republicanos, do Partido Republicano Português (PRP), sem que este esteja, documentalmente provado, nela envolvido, directa ou indirectamente; a de António Granjo é resultado de estranhas disputas e vinganças ainda não esclarecidas entre republicanos, monárquicos e católicos; a de Sidónio Pais, sem provas concludentes, redunda de um acto isolado de um indivíduo tresloucado; a tentativa falhada de assassinato de João Chagas foi uma vingança de um adversário político. E postos os factos desta forma, será que configuram actos de uma guerra civil, mesmo que intermitente?
Que estranha guerra civil esta nascida na imaginação de António Telo!
Se todos os assassinatos ocorridos no mundo político — e só nele — fossem parte de uma guerra civil, para Telo, o mundo seria um lugar impossível de viver em paz!

E o que dizer quando passamos aos golpes militares? E à intervenção armada de civis nesses golpes? Bom, teremos de dizer que, para António José Telo, o século XIX, na Europa e nas Américas, esteve sempre em guerra civil! Esteve, porque todo o processo de mudança e alternância do Poder em muitos países, começando pela nossa vizinha Espanha, se foi efectuando, fruto da própria Revolução Industrial e do processo por ela desencadeado, de uma forma violenta entre grupos de interesses financeiros — para não falar de classes, conceito que António José Telo dominou bem na sua juventude — que, para se afirmarem, usavam o golpe militar em associação com civis armados. Por certo não foi Portugal quem inventou este sistema de conquista do Poder! Mas Telo, cometendo o erro do anacronismo, que se lhe começa a notar, e que transforma o historiador em comentador, contador de histórias ou, pior ainda, em defensor de ideologias políticas, pretende que Portugal fuja, na primeira metade do século XX, ao modelo político tão espalhado e comum na Europa e no resto do mundo! Convém, para alinhar com os criadores de uma paz social, uma ordem impoluta, nascida em 1933 com a Constituição Política daquilo que se chamava República assente na União Nacional!

Ao que António José Telo se propõe fazer não se chama História, mas antes manipulação dos factos históricos para gerar apoios supostamente científicos a uma ideologia política que pode surgir em qualquer momento em que a democracia baixe a guarda.

sexta-feira, 11 de março de 2016

Fazer ou não fazer História


A não ser que se admita inequivocamente a inexistência de uma soberania nacional, as razões para um Estado se tornar beligerante encontram-se dentro desse Estado e dentro do contexto internacional em que esse mesmo Estado se movimenta.
É completamente falacioso querer justificar a beligerância portuguesa na Grande Guerra através da exploração documental fora do nosso país. No máximo, o que se pode encontrar é documentação que faz a contra-prova das provas nacionais.

Quando António José Telo afirma «Muitas das obras nacionais sobre a guerra não são de História, mas sim de ideologia», porque vêm dar continuidade às «mentiras oficiais avançadas pelos guerristas» (veja-se a comunicação final que fez no XXIII colóquio de História Militar publicada nas Actas desse evento académico) está ele mesmo a cair no erro de que acusa os autores de «muitas das obras nacionais sobre a guerra» e começa logo a fazê-lo quando identifica o «1.º Erro» dessa não História: «Negar a realidade de uma guerra civil intermitente».
E, entre que datas, baliza ele essa guerra civil intermitente? Como não podia deixar de ser, entre 1908 e 1927!
E é ele quem acusa os autores de «Muitas das obras nacionais sobre a guerra não [serem] de História, mas sim de ideologia»! Estranha perspectiva a deste historiador! Ele que estabelece os limites entre duas ditaduras!
Imagino, defender-se-á da minha afirmação, dizendo que 1908 é referido como o ano do regicídio e 1927 como o da última grande revolta contra a ditadura militar iniciada por Gomes da Costa, em 28 de Maio de 1926. Mas a verdade é que se tem de olhar para o que politicamente estava em Portugal antes do regicídio e o que fica depois da revolta militar de 1927. O que estava eram duas ditaduras conservadoras. A isso poderia eu designar a paz continuada no obscurantismo. Então com quem se identifica ideologicamente António José Telo? Com as ditaduras ou com a guerra civil intermitente por ele assim chamada ao período em causa? Não corresponderá isto exactamente ao erro de que ele acusa os que, em vez de História fazem ideologia?

Santa paciência! A posição de António José Telo é, realmente, uma coincidência, envolta em outras roupagens, com a propaganda anti-republicana do Estado Novo contra os desmandos — traduzidos agora por guerra civil intermitente — inspirados pelos republicanos ou mesmo por eles praticados!

E o que foi essa guerra civil intermitente? Nada mais, nada menos do que o confronto entre elementos de uma sociedade tendente para o conservadorismo obscurantista e elementos de ruptura, apontando para a modernidade. Por isso, em poucas palavras, foi mais do que a sucessão de episódios políticos elencados por António José Telo. E a República, com todos os seus desentendimentos, correspondeu ao momento de ruptura com um passado obscurantista, perfeitamente identificado, em 1870, por Antero de Quental e, dez anos depois, na juventude de Afonso Costa, por Guerra Junqueiro. Foram duas gerações de intelectuais portugueses, juntando-se para reconhecerem as razões profundas das misérias nacionais e dos inimigos que a elas conduziram. Foram duas gerações caminhando para a comunhão com o ideal republicano. São as gerações de Manuel de Arriaga, Teófilo Braga e as de João Chagas, Afonso Costa e António José de Almeida a fundirem-se no sentido de encontrarem um novo rumo para um Portugal quase à deriva. A morte do rei D. Carlos e do filho, herdeiro do trono, D. Luís Filipe, como declara o insuspeito Miguel Unamuno, não foi um assassinato, mas, configurando um suicídio, foi uma execução popular para se pôr fim ao terrorismo ditatorial em que se vivia e, esperava-se, a República fosse capaz de remediar através de reformas ousadas. Mas ainda faltava perceber — tal como falta hoje — que uma mudança política se opera em horas ou dias, mas uma alteração de mentalidades demora gerações a conseguir-se e, mesmo assim, nunca se faz completamente como o está a demonstrar António José Telo.
A guerra civil intermitente não foi a luta política que o historiador Telo refere e que Salazar mandou decretar ter sido! Foi o confronto entre a identificação com a mentalidade conservadora do passado e a mentalidade revolucionária, reformadora, renovadora desejosa de chegar ao futuro que era, já então, o presente da Europa monárquica de além Pirenéus! É isto que o historiador António José Telo não mostra, porque sabendo-o, creio, esconde-o para fazer uma nova História da Grande Guerra.

Não há novas Histórias da Grande Guerra! Há o entendimento do que deixei dito ou a negação desse entendimento! E a negação não é, nem pode ser, irresponsável e, muito menos, inocente!
António José Telo está a ligar o seu nome a um branqueamento e a uma nova interpretação e leitura dos factos com que, ou se pretende perpetuar ou dar continuidade ao obscurantismo da ditadura salazarista.

Prometo voltar ao assunto para demonstrar e desmantelar os catorze erros de que António José Telo acusa a historiografia oficial da Grande Guerra.

quarta-feira, 9 de março de 2016

No dia do centenário: Historiadores ou críticos?


Foi a 9 de Março, há cem anos, que a Alemanha declarou guerra a Portugal. No documento entregue em Lisboa por von Rosen a bofetada internacionalmente sabida, usada à boca pequena e sobejamente conhecida além fronteiras, foi dada, com a mão bem aberta e sem luva, na face da Nação culta: «Governo português deu a conhecer que se considera como vassalo da Inglaterra». Vassalo da Inglaterra e essa já tinha sido a expressão usada pelo imperador dos Franceses havia pouco mais de cem anos quando declarou guerra a Portugal por aqui não se cumprir o bloqueio por ele determinado.

- Isto era verdade ou uma descarada mentira para justificar o ataque?
Infelizmente, esta era a verdade, que alguns escondiam de quase todos e quase todos reconheciam como facto certo! A Inglaterra lidava com Portugal, havia séculos, como se de um seu protectorado se tratasse.
A revolução republicana não foi só — e isso comprova-se documentalmente — uma mudança de regime; foi uma intenção de mudar de postura interna e externamente para empurrar Portugal para a modernidade de então e, aproveitando o momento certo, fugir, sem fugir — contradição que os bons políticos e os diplomatas experimentados sabem muito bem o que é — da tutela humilhante da Grã-Bretanha. Era necessária a aproximação à França, também ela uma República, para conseguir tornear as grilhetas impostas pela Inglaterra.

É isto que justifica, desde o início do conflito armado na Europa, o desejo de beligerância mostrado e exaltado por Afonso Costa e praticado por uma parte significativa do Partido Democrático; houve outra que, por incapacidade mental e falta de elasticidade intelectual, política e estratégica, não compreendendo o objectivo supremo do chefe partidário, todavia, o acompanhou.

Este era um assunto tão melindroso que dele não se podia falar nos jornais nem nos discursos políticos; tinha de ser compreendido por explicação discreta. Mas bastava a quem da política tivesse uma clara visão para perceber que Afonso Costa não agia de forma a levar Portugal à guerra em consequência de mero imperativo de vontade sem sentido. Isso era tão estúpido que só na cabeça dos broncos analfabetos, despolitizados e embrutecidos pela acção de caciques e de um clero revoltado, podia ter sustentação. E em Portugal abundava essa gente, porque, como salta imediatamente à vista, a Monarquia obscurantista, terratanente e oportunamente católica, assim fazia para melhor ter dominada a população maioritária dos campos e das pequenas vilas e cidades rurais. E para se provar que foi exactamente assim, basta recordar que os republicanos proliferaram, antes da proclamação da República, nas grandes cidades e junto da pequena e média burguesia. A aldeia e a vila foram sempre católicos, supostamente monárquicos, porque dominados pelo clero conluiado com os agrários e os caciques locais.

Ora, é isto que não se entende que certos historiadores — nomeadamente António José Telo — não percebam como fundamento do desejo da beligerância nacional, que se concretizou a 9 de Março de há cem anos. E mais grave do que eles não perceberem é levarem o alimento a gente que não tem cultura histórica para perceber o que acima deixei dito, pois, ao fazê-lo, socorrem-se da argumentação usada no período fascista da nossa História para condenar a 1.ª República através da condenação do Partido Democrático e da ala política mais progressista dos republicanos. Consciente ou inconscientemente estes historiadores estão a ajudar ao branqueamento do Estado Novo, empurrando para a 1.ª República as causas das desgraças nacionais.

Isto não é fazer História! É fazer crítica anacrónica com fins obscuros que, até, se podem fixar somente na necessidade individual de ser diferente. Mas o mais grave é que esta historiografia encontra eco junto de entidades oficiais que, com forte dose de ignorância — a beligerância nacional na Grande Guerra teve muito poucos historiadores depois de 1974, porque, antes desse ano, nem se estudava ou dela falava com um mínimo de profundidade — aceitam verdades que são distorcidas e classificam de pluralismo académico!

O pluralismo académico faz-se levando mais longe a explicação dos factos e não através da crítica dos actores, usando o anacronismo. Que se expliquem e aprofundem as razões dos anti-beligerantes, mas partindo da razão profunda que levou Portugal à guerra! Isso é fazer História. Negar as razões da época — 1914-1917 — procurando fundamentar a beligerância em erros — como o fez e faz António José Telo (vd. Comunicação final do Colóquio de História Militar levado a cabo pela Comissão Portuguesa de História Militar, em 2014, publicada nas respectivas Actas) é distorcer, é alterar, e corromper, a partir de alguns factos verdadeiros, a verdade da História.