quarta-feira, 23 de março de 2016

E o interesse nacional português?


É extraordinário como se pode, com os mesmos factos, os mesmos documentos, os mesmos acontecimentos contar e, acima de tudo, interpretar coisas diferentes, por simples omissão!

Se o historiador António José Telo, em vez de tentar condenar, na actualidade, a beligerância portuguesa de há cem anos, procurasse a razão profunda dessa mesma beligerância, ao invés de a colocar como mera teimosia de um partido político e do seu líder, talvez fizesse mais luz sobre a verdade do que, ao pleitear o passado, condená-la!
Vem isto a propósito do «4.º Erro» por ele indicado na comunicação, que continuamos a seguir, feita no acto de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em Novembro de 2014, intitulado «Pensar numa França apagada perante uma Grã-Bretanha activa».

Porque Telo continua teimosamente a defender a sua tese, ou seja, que o interesse nacional português, em 1914, devia ser, em primeiro lugar, definido pela Grã-Bretanha, e, em segundo lugar, defendido pelos ditames estabelecidos no Foreign Office, volta à carga, agora com a situação concreta em que Londres se viu confrontada, em Setembro de 1914, quando a França pediu auxílio a Portugal, configurado na cedência de armamento.
Para que não restem dúvidas e se perceba o que António Telo está a fazer à historiografia nacional, transcrevo os termos que usa nessa comunicação — documento supostamente escrito para o futuro e norteador da sua posição sobre o assunto: «A primeira tentativa, surge logo em Setembro de 1914, quando Paris, sem o prévio conhecimento de Londres [sublinhado da minha autoria] pede a Lisboa a cedência de peças de artilharia […]»!
Para o historiador António José Telo já não era só Portugal que se deveria submeter à vontade da Grã-Bretanha, mas também a França! Isto é simplesmente inaudito! Claro que o argumento a utilizar para justificar a sua afirmação é o da não existência de aliança nenhuma entre Portugal e a França! Mas era necessário que houvesse? E não poderia estar neste pedido o esboço de uma nova aliança de Portugal com um outro aliado? Portugal era propriedade de Londres?

O perigo desta postura historiográfica de António José Telo não está só na sua interpretação esdrúxula da História recente de Portugal e da História da 1.ª República. O verdadeiro perigo está no facto de ele ser professor de História na Academia Militar e, assim, passar para os futuros oficiais do Exército uma interpretação fundamentalmente ideológica e marcadamente identificada com uma postura internacional pouco ou nada dignificante do brio que deve presidir à definição do interesse nacional português.

Mas, voltando aos factos, Telo não traz nada de novo, pois, já em 1990, eu na minha tese de mestrado, apresentada no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, chamava a atenção para o papel que poderia ter tido — e teve, efectivamente — João Chagas, ministro de Portugal em Paris e, em Setembro de 1914, em Bordéus, no pedido de armamento feito pela França. (Mais tarde vim a clarear essa minha hipótese em trabalho bem mais fundamentado). Esse pedido inseria-se numa política de elucidação da ambiguidade em que Londres obrigara Portugal a ficar perante o mundo e, particularmente, perante os combatentes: nem neutral — para satisfazer todos os interesses da Grã-Bretanha — nem beligerante — para não atrapalhar os interesses britânicos. E é esta indefinição que António José Telo considera que se deveria ter adopatado! Mas a História não se faz com se; a História faz-se com o que foi; e é a partir do que foi que ela deve ser explicada. Explicada para se perceber por que é que foi e como foi! Não é explicá-la como foi para, logo depois, a condenar!

Houve um evidente desfasamento entre a possibilidade de fornecer o armamento pedido pelos Franceses e a imediata mobilização de uma Divisão Auxiliar. Mandar aquela grande unidade militar para a frente ocidental ao mesmo tempo que se despachavam as peças de artilharia requeridas pela França, teria sido o ideal! Mas a intriga, o medo, a incompreensão e, mais do que tudo, a inépcia impuseram-se de imediato. E todos estes defeitos Telo enaltece, porque, no fundo, favoreciam a Grã-Bretanha e os seus interesses!
Não julgue o leitor tratar-se de um exagero meu! Repare nesta passagem da autoria do historiador Telo: «O jogo britânico é muito hábil, como é normal [sublinhado da minha autoria], e acaba por ser bem-sucedido, como é igualmente normal [sublinhado da minha autoria]. O que Londres faz é fingir apoiar o pedido de França, mas sempre salientando que só devem ser enviadas as peças sem os homens.» Contudo, vai mais longe e note-se a simpatia, a apologia, o encanto que perpassam das palavras de Telo, professor de História da Academia Militar Portuguesa: «Ao mesmo tempo a Grã-Bretanha incentiva os anti-guerristas portugueses a impedirem a beligerância forçada [qual é o interesse nacional que está aqui a ser enaltecido pelo historiador Telo: o de Portugal — para deixar de ser tutelado pela velha aliada — ou o da Grã-Bretanha?], nomeadamente passando os seus ultra-secretos documentos diplomáticos ao chefe da oposição [sublinhado da minha autoria] (o anti-guerrista Brito Camacho). Tal como Londres esperava, Brito Camacho escreve uma série de artigos no seu jornal (A Luta) onde denuncia a mentira do Governo a partir dos documentos britânicos.»

O leitor vislumbra bem a interpretação de António José Telo e a sua intenção de reescrever a História de Portugal e a Grande Guerra? Percebe que ele não compreende e não aceita, passados cem anos, que houve uma estratégia nacional conduzida pelo partido beligerante para se desligar desta interferência de Londres nos negócios internos portugueses?! Percebe que quem está a fazer e a continuar a prática de uma História distorcida pela obcecação partidária é este professor de futuros oficiais do Exército?! Percebe?! Percebe que a influência nas mentes daqueles a quem um dia pode ser pedido que, por razões de dignidade soberana, se entre numa guerra e se lembrem das palavras do seu mestre, que escreveu: «O resultado é que em fins de 1914 nasce em Portugal um amplo movimento anti-guerrista, principalmente a partir das Forças Armadas [sublinhado meu], que interpreta o sentimento maioritário da Nação» possa ser o rastilho da desobediência militar? Percebe o leitor a gravidade de tudo isto?!

Ora, pergunto eu:
— Quantas vezes o sentimento maioritário é coincidente com o interesse nacional num Estado onde 75% da população é analfabeta e completamente dominada pelo obscurantismo clerical da Igreja Católica e, por ser ignaro, é dominado pela vontade dos caciques locais?
É que quando o historiador e professor de futuros oficiais do Exército António José Telo omite esta situação particular está a adulterar a História, tal como se fez durante o regime ditatorial do Estado Novo, de modo a distorcer mentes e raciocínios. Ele não conta a História toda! E, mais do que tudo, faz crer que o interesse nacional é definido pelo Povo quando, sabemo-lo desde o tratado de Vestefália, ele é definido por quem representa essa entidade abstrata designada por Estado. Ora, a luta de Brito Camacho, da Grã-Bretanha e de todos os que não queriam a beligerância representava a satisfação de um interesse nacional que não era o nosso, o de Portugal enquanto Estado soberano, independente e com igual valor no plano internacional ao de todos os restantes Estados.

Cuidado Senhores ministros, senhores generais, senhores decisores políticos, porque o ensino é uma mina, uma granada de espoleta retardada e quem o dominar domina o futuro!

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