sexta-feira, 11 de março de 2016

Fazer ou não fazer História


A não ser que se admita inequivocamente a inexistência de uma soberania nacional, as razões para um Estado se tornar beligerante encontram-se dentro desse Estado e dentro do contexto internacional em que esse mesmo Estado se movimenta.
É completamente falacioso querer justificar a beligerância portuguesa na Grande Guerra através da exploração documental fora do nosso país. No máximo, o que se pode encontrar é documentação que faz a contra-prova das provas nacionais.

Quando António José Telo afirma «Muitas das obras nacionais sobre a guerra não são de História, mas sim de ideologia», porque vêm dar continuidade às «mentiras oficiais avançadas pelos guerristas» (veja-se a comunicação final que fez no XXIII colóquio de História Militar publicada nas Actas desse evento académico) está ele mesmo a cair no erro de que acusa os autores de «muitas das obras nacionais sobre a guerra» e começa logo a fazê-lo quando identifica o «1.º Erro» dessa não História: «Negar a realidade de uma guerra civil intermitente».
E, entre que datas, baliza ele essa guerra civil intermitente? Como não podia deixar de ser, entre 1908 e 1927!
E é ele quem acusa os autores de «Muitas das obras nacionais sobre a guerra não [serem] de História, mas sim de ideologia»! Estranha perspectiva a deste historiador! Ele que estabelece os limites entre duas ditaduras!
Imagino, defender-se-á da minha afirmação, dizendo que 1908 é referido como o ano do regicídio e 1927 como o da última grande revolta contra a ditadura militar iniciada por Gomes da Costa, em 28 de Maio de 1926. Mas a verdade é que se tem de olhar para o que politicamente estava em Portugal antes do regicídio e o que fica depois da revolta militar de 1927. O que estava eram duas ditaduras conservadoras. A isso poderia eu designar a paz continuada no obscurantismo. Então com quem se identifica ideologicamente António José Telo? Com as ditaduras ou com a guerra civil intermitente por ele assim chamada ao período em causa? Não corresponderá isto exactamente ao erro de que ele acusa os que, em vez de História fazem ideologia?

Santa paciência! A posição de António José Telo é, realmente, uma coincidência, envolta em outras roupagens, com a propaganda anti-republicana do Estado Novo contra os desmandos — traduzidos agora por guerra civil intermitente — inspirados pelos republicanos ou mesmo por eles praticados!

E o que foi essa guerra civil intermitente? Nada mais, nada menos do que o confronto entre elementos de uma sociedade tendente para o conservadorismo obscurantista e elementos de ruptura, apontando para a modernidade. Por isso, em poucas palavras, foi mais do que a sucessão de episódios políticos elencados por António José Telo. E a República, com todos os seus desentendimentos, correspondeu ao momento de ruptura com um passado obscurantista, perfeitamente identificado, em 1870, por Antero de Quental e, dez anos depois, na juventude de Afonso Costa, por Guerra Junqueiro. Foram duas gerações de intelectuais portugueses, juntando-se para reconhecerem as razões profundas das misérias nacionais e dos inimigos que a elas conduziram. Foram duas gerações caminhando para a comunhão com o ideal republicano. São as gerações de Manuel de Arriaga, Teófilo Braga e as de João Chagas, Afonso Costa e António José de Almeida a fundirem-se no sentido de encontrarem um novo rumo para um Portugal quase à deriva. A morte do rei D. Carlos e do filho, herdeiro do trono, D. Luís Filipe, como declara o insuspeito Miguel Unamuno, não foi um assassinato, mas, configurando um suicídio, foi uma execução popular para se pôr fim ao terrorismo ditatorial em que se vivia e, esperava-se, a República fosse capaz de remediar através de reformas ousadas. Mas ainda faltava perceber — tal como falta hoje — que uma mudança política se opera em horas ou dias, mas uma alteração de mentalidades demora gerações a conseguir-se e, mesmo assim, nunca se faz completamente como o está a demonstrar António José Telo.
A guerra civil intermitente não foi a luta política que o historiador Telo refere e que Salazar mandou decretar ter sido! Foi o confronto entre a identificação com a mentalidade conservadora do passado e a mentalidade revolucionária, reformadora, renovadora desejosa de chegar ao futuro que era, já então, o presente da Europa monárquica de além Pirenéus! É isto que o historiador António José Telo não mostra, porque sabendo-o, creio, esconde-o para fazer uma nova História da Grande Guerra.

Não há novas Histórias da Grande Guerra! Há o entendimento do que deixei dito ou a negação desse entendimento! E a negação não é, nem pode ser, irresponsável e, muito menos, inocente!
António José Telo está a ligar o seu nome a um branqueamento e a uma nova interpretação e leitura dos factos com que, ou se pretende perpetuar ou dar continuidade ao obscurantismo da ditadura salazarista.

Prometo voltar ao assunto para demonstrar e desmantelar os catorze erros de que António José Telo acusa a historiografia oficial da Grande Guerra.

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