É extraordinário como se pode, com os mesmos factos, os
mesmos documentos, os mesmos acontecimentos contar e, acima de tudo,
interpretar coisas diferentes, por simples omissão!
Se o historiador António José Telo, em vez de tentar condenar, na actualidade, a beligerância
portuguesa de há cem anos, procurasse a razão profunda dessa mesma beligerância, ao invés de a colocar como mera
teimosia de um partido político e do seu líder, talvez fizesse mais luz sobre a
verdade do que, ao pleitear o
passado, condená-la!
Vem isto a propósito do «4.º Erro» por ele indicado na
comunicação, que continuamos a seguir, feita no acto de encerramento do XXIII
colóquio de História Militar, em Novembro de 2014, intitulado «Pensar numa
França apagada perante uma Grã-Bretanha activa».
Porque Telo continua teimosamente a defender a sua tese, ou
seja, que o interesse nacional português, em 1914, devia ser, em primeiro lugar,
definido pela Grã-Bretanha, e, em segundo lugar, defendido pelos ditames
estabelecidos no Foreign Office,
volta à carga, agora com a situação concreta em que Londres se viu confrontada,
em Setembro de 1914, quando a França pediu auxílio a Portugal, configurado na
cedência de armamento.
Para que não restem dúvidas e se perceba o que António Telo
está a fazer à historiografia nacional, transcrevo os termos que usa nessa
comunicação — documento supostamente escrito para o futuro e norteador da sua
posição sobre o assunto: «A primeira tentativa, surge logo em Setembro de 1914,
quando Paris, sem o prévio conhecimento
de Londres [sublinhado da minha autoria] pede a Lisboa a
cedência de peças de artilharia […]»!
Para o historiador António José Telo já não era só Portugal que
se deveria submeter à vontade da Grã-Bretanha, mas também a França! Isto é
simplesmente inaudito! Claro que o argumento a utilizar para justificar a sua
afirmação é o da não existência de aliança nenhuma entre Portugal e a França!
Mas era necessário que houvesse? E não poderia estar neste pedido o esboço de
uma nova aliança de Portugal com um outro aliado? Portugal era propriedade de Londres?
O perigo desta
postura historiográfica de António José Telo não está só na sua interpretação esdrúxula
da História recente de Portugal e da História da 1.ª República. O verdadeiro perigo está no facto de ele
ser professor de História na Academia Militar e, assim, passar para os futuros oficiais do Exército uma interpretação
fundamentalmente ideológica e marcadamente identificada com uma postura
internacional pouco ou nada dignificante do brio que deve presidir à definição
do interesse nacional português.
Mas, voltando aos factos, Telo não traz nada de novo, pois,
já em 1990, eu na minha tese de mestrado, apresentada no Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas, chamava a atenção para o papel que poderia ter
tido — e teve, efectivamente — João Chagas, ministro de Portugal em Paris e, em
Setembro de 1914, em Bordéus, no pedido de armamento feito pela França. (Mais
tarde vim a clarear essa minha hipótese em trabalho bem mais fundamentado).
Esse pedido inseria-se numa política de elucidação da ambiguidade em que
Londres obrigara Portugal a ficar perante o mundo e, particularmente, perante
os combatentes: nem neutral — para
satisfazer todos os interesses da Grã-Bretanha — nem beligerante — para não atrapalhar os interesses britânicos. E é
esta indefinição que António José Telo considera que se deveria ter adopatado!
Mas a História não se faz com se; a
História faz-se com o que foi; e é a partir do que foi que ela deve ser
explicada. Explicada para se perceber por
que é que foi e como foi! Não é explicá-la
como foi para, logo depois, a condenar!
Houve um evidente desfasamento entre a possibilidade de
fornecer o armamento pedido pelos Franceses e a imediata mobilização de uma Divisão Auxiliar. Mandar aquela grande
unidade militar para a frente ocidental ao mesmo tempo que se despachavam as
peças de artilharia requeridas pela França, teria sido o ideal! Mas a intriga,
o medo, a incompreensão e, mais do que tudo, a inépcia impuseram-se de
imediato. E todos estes defeitos Telo enaltece, porque, no fundo, favoreciam a
Grã-Bretanha e os seus interesses!
Não julgue o leitor tratar-se de um exagero meu! Repare
nesta passagem da autoria do historiador Telo: «O jogo britânico é muito hábil,
como é normal [sublinhado da minha
autoria], e acaba por ser bem-sucedido, como
é igualmente normal [sublinhado da minha autoria]. O que Londres faz é
fingir apoiar o pedido de França, mas sempre salientando que só devem ser
enviadas as peças sem os homens.» Contudo, vai mais longe e note-se a simpatia,
a apologia, o encanto que perpassam das palavras de Telo, professor de História
da Academia Militar Portuguesa: «Ao mesmo tempo a Grã-Bretanha incentiva os
anti-guerristas portugueses a impedirem a beligerância forçada [qual é o
interesse nacional que está aqui a ser enaltecido pelo historiador Telo: o de
Portugal — para deixar de ser tutelado pela velha aliada — ou o da
Grã-Bretanha?], nomeadamente passando os
seus ultra-secretos documentos diplomáticos ao chefe da oposição
[sublinhado da minha autoria] (o anti-guerrista Brito Camacho). Tal como
Londres esperava, Brito Camacho escreve uma série de artigos no seu jornal (A Luta) onde denuncia a mentira do
Governo a partir dos documentos britânicos.»
O leitor vislumbra bem a interpretação de António José Telo
e a sua intenção de reescrever a História de Portugal e a Grande Guerra?
Percebe que ele não compreende e não aceita, passados cem anos, que houve uma
estratégia nacional conduzida pelo partido beligerante para se desligar desta
interferência de Londres nos negócios internos portugueses?! Percebe que quem
está a fazer e a continuar a prática de uma História distorcida pela obcecação
partidária é este professor de futuros oficiais do Exército?! Percebe?! Percebe
que a influência nas mentes daqueles a quem um dia pode ser pedido que, por
razões de dignidade soberana, se entre numa guerra e se lembrem das palavras do
seu mestre, que escreveu: «O
resultado é que em fins de 1914 nasce em Portugal um amplo movimento
anti-guerrista, principalmente a partir
das Forças Armadas [sublinhado meu], que interpreta o sentimento
maioritário da Nação» possa ser o rastilho da desobediência militar? Percebe o
leitor a gravidade de tudo isto?!
Ora, pergunto eu:
— Quantas vezes o sentimento maioritário é coincidente com o
interesse nacional num Estado onde 75% da população é analfabeta e completamente
dominada pelo obscurantismo clerical da Igreja Católica e, por ser ignaro, é
dominado pela vontade dos caciques locais?
É que quando o historiador e professor de futuros oficiais
do Exército António José Telo omite esta situação particular está a adulterar a
História, tal como se fez durante o regime ditatorial do Estado Novo, de modo a
distorcer mentes e raciocínios. Ele não conta a História toda! E, mais do que
tudo, faz crer que o interesse nacional é definido pelo Povo quando,
sabemo-lo desde o tratado de Vestefália, ele é definido por quem representa
essa entidade abstrata designada por Estado. Ora, a luta de Brito Camacho, da
Grã-Bretanha e de todos os que não queriam a beligerância representava a
satisfação de um interesse nacional que não era o nosso, o de Portugal enquanto
Estado soberano, independente e com igual valor no plano internacional ao de
todos os restantes Estados.
Cuidado Senhores ministros, senhores generais, senhores
decisores políticos, porque o ensino é uma mina, uma granada de espoleta
retardada e quem o dominar domina o futuro!