sexta-feira, 1 de abril de 2016

A requisição dos navios alemães: verdades e omissões


Uma ou duas omissões, quando se conta uma história, constitui uma excelente forma de alterar a realidade dos factos e fazer crer naquilo que se pretende demonstrar como verdade.
Vem isto a propósito dos tais «Erros» que António José Telo, na comunicação de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em Novembro de 2014, inventariou — arriscava-me a dizer, imaginou existirem — naquilo que chamou a versão oficial da História da beligerância portuguesa. O quinto «Erro» resolveu titulá-lo da seguinte forma: «É a Grã-Bretanha que provoca a apreensão dos navios».
Como é que o historiador Telo o descreve para mostrar a verdade da sua afirmação?

Dada a carência de créditos e de divisas para o comércio internacional e o começo da fome interna, o Governo de Lisboa pediu um empréstimo de dois milhões de libras a Londres. Por seu turno o ministro representante de Portugal em Paris faz saber ao Governo de França as dificuldades financeiras de Portugal. Paris propõe que Lisboa requisite os navios alemães e austríacos e os alugue à França ao mesmo tempo que informa o Governo de Londres desta acção. Face a isto, António José Telo diz textualmente: «Perante a atitude de força [destaque da minha autoria] francesa a alternativa britânica é muito simples: ou deixa que o assunto passe para as mãos de Paris, o que significa que Portugal entra na guerra apoiado pela França e, possivelmente, isto representaria o fim da secular Aliança [destaque da minha autoria]; ou assume ela a chefia do processo.» Deixemos esta frase a amadurecer e continuemos.
A Inglaterra opõe-se à jogada francesa e, ainda segundo Telo, Londres faz saber que Lisboa deve requisitar os navios para serem usados pela Grã-Bretanha e conclui da seguinte forma: «Do ponto de vista nacional o que desencadeou o processo foi o pedido de ajuda financeira apresentado por razões partidárias [destaque da minha autoria] (manter o Governo no poder); do ponto de vista internacional o que desencadeou o pedido britânico foi mais uma acção de força da França [destaque da minha autoria].»
Ora vamos lá desmontar esta história bastante incompleta, cheia de omissões e segundos sentidos.

Comecemos por Portugal e a França.
Em Portugal, já o disse, mas repito, o Governo Afonso Costa saído do golpe militar de 14 de Maio de 1915, tinha um objectivo: levar o país à beligerância para se libertar da pecha internacional de ser um Estado tutelado pela Grã-Bretanha e, por outro lado, mas consequência dessa tutela, ter lugar à mesa da negociação de paz, quando ela chegasse, para garantir a integridade territorial em África e a independência na Península, pois nada garantia e tudo apontava para que até o fim das hostilidades se fizesse à custa de compensações coloniais para a Alemanha e, ou, a Bélgica resultantes do esbulho de Angola e Moçambique, pelo menos.

É desta baliza, deste cenário, que se tem de partir para perceber a beligerância portuguesa e a necessidade sentida por Afonso Costa de ser profundamente revolucionário na condução da política externa, tal como o havia já sido na política interna, quer abatendo as forças mais reaccionárias e capazes de travar o processo de mudança de caminho para a modernidade das mentalidades — o clero da Igreja Católica — quer saneando financeiramente o cancro orçamental herdado do século XIX.
Ora, o pedido de empréstimo à Inglaterra, mesmo que tratando-se, como efectivamente se tratou, de um negócio para não ter publicidade, destinava-se a fazer face, fundamentalmente, a uma série de despesas com o reequipamento do Exército e da Armada e nada tinha a ver com razões partidárias, que só obtusamente podem ter lugar na mente de alguém na actualidade presente! Eram razões de Estado!
Razões de Estado, repito, porque é algo que António Telo parece só perceber se se tratar da Inglaterra! Para ele, as razões de Estado representadas pelo partido democrático transformam-se em razões partidárias, exactamente porque põe o enfoque das medidas políticas na defesa dos interesses ingleses e nunca no do interesse nacional português.

António Telo, na sua enfatuada comunicação, parecendo ter descoberto alguma coisa de novo, não leva em conta o que John Vincent-Smith desvendou há quarenta anos! E menos em conta leva o que A. H. de Oliveira Marques deu a conhecer a todos os historiadores desta época quando publicou as actas das reuniões do Gabinete ministerial, também em data muito distante, para não dizer que desconheceu em absoluto o que eu escrevi, em 1990, sobre este assunto. Para ele, tudo isto é zero! Ou, talvez, História sem fundamento, porque simplesmente foi feita no sentido da História oficial, que ele não só nega como combate!

Mas que raio disseram estes historiadores? Pois bem, Vincent-Smith desvenda que o ministro dos negócios estrangeiros britânico condicionou o terceiro milhão de libras — e não dois como Telo afirma — à requisição dos navios inimigos recolhidos nos portos portugueses!!
Ora, caros leitores, que nome se pode dar a esta atitude de Sir Edward Grey? Talvez chantagem, não?! Talvez a prova provada de como Londres fazia política com Lisboa! Mas, mais do que julgar a atitude do máximo responsável pelo Foreign Office, interessa perceber que:
a) O Governo britânico empurrou o Governo de Lisboa para a requisição dos navios;
b) O Governo de Lisboa soube movimentar-se muito bem, aproveitando as necessidades britânicas, para conseguir o seu objectivo diplomático e nacional;
c) O Governo de Londres só agiu como agiu, porque foi forçado pelo Gabinete de Guerra, chefiado por Lord Kitchener, a invocar a Aliança para que se requisitassem os navios.
Não sou eu quem faz esta afirmação! É Vincent-Smith, que Telo ou desconhece ou despreza propositadamente! Eu limitei-me, em 1990, a juntar as pontas, através de ler com olhos atentos as actas do Governo Afonso Costa publicadas por Oliveira Marques e disso dei notícia pública, em livro saído do prelo em 2001 com o título O Fim da Ambiguidade, embora já estivesse à consulta pública, na Biblioteca Nacional, há dez anos, a minha tese de mestrado em Estratégia!

Voltemos ao texto de António José Telo.
Como destaquei em cima, ele próprio deixa clara a sua posição ideológica perante este facto: «[…] Portugal entra na guerra apoiado pela França e, possivelmente, isto representaria o fim da secular Aliança […]» e, mais à frente, «[…] o que desencadeou o pedido britânico foi mais uma acção de força da França».
Telo, para além de condenar a política externa portuguesa, condena a diplomacia francesa, que se deveria subordinar, segundo o que deixa transparecer, ao interesse e aos ditames da política inglesa! Telo está a fazer a História do interesse nacional britânico ou a História da participação de Portugal na Grande Guerra? Ele retira a possibilidade da França e Portugal refazerem a sua política externa em função de interesses que, em dado momento, convergem no mesmo sentido: quem tinha o território invadido pela Alemanha era a França e quem queria libertar-se de uma aliança que esmagava era Portugal! António Telo não concede a Paris e a Lisboa a liberdade de se movimentarem sem ser sob a tutela de Londres! É que, para a França, todo o auxílio em homens e armamento era fundamental, mas, para Telo, mais fundamental era cumprirem-se os interesses britânicos!

O leitor percebe como, com omissões e distorções, se pode alterar a História? Como o que era lógico, transparente e evidente se transforma em algo obscuro, mal-intencionado e, até, quase condenável? E porquê? Porque se comete o erro — esse sim, muito grave — do anacronismo histórico!

Um comentário:

  1. Obrigada Professor por Partilhar Conhecimento.

    Este seu artigo é bastante importante para o meu conhecimento sobre este assunto. Não conheço o que Telo escreveu, mas percebi o que se passou com esta sua explicação na qual acredito.

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