Uma ou duas omissões, quando se conta uma história,
constitui uma excelente forma de alterar a realidade dos factos e fazer crer
naquilo que se pretende demonstrar como verdade.
Vem isto a propósito dos tais «Erros» que António José Telo,
na comunicação de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em
Novembro de 2014, inventariou — arriscava-me a dizer, imaginou existirem — naquilo que chamou a versão oficial da História da beligerância portuguesa. O quinto
«Erro» resolveu titulá-lo da seguinte forma: «É a Grã-Bretanha que provoca a
apreensão dos navios».
Como é que o historiador Telo o descreve para mostrar a verdade da sua afirmação?
Dada a carência de créditos e de divisas para o comércio
internacional e o começo da fome interna, o Governo de Lisboa pediu um
empréstimo de dois milhões de libras a Londres. Por seu turno o ministro
representante de Portugal em Paris faz saber ao Governo de França as
dificuldades financeiras de Portugal. Paris propõe que Lisboa requisite os
navios alemães e austríacos e os alugue à França ao mesmo tempo que informa o
Governo de Londres desta acção. Face a isto, António José Telo diz
textualmente: «Perante a atitude de
força [destaque da minha autoria] francesa a alternativa britânica é muito
simples: ou deixa que o assunto passe para as mãos de Paris, o que significa
que Portugal entra na guerra apoiado pela
França e, possivelmente, isto representaria o fim da secular Aliança
[destaque da minha autoria]; ou assume ela a chefia do processo.» Deixemos esta
frase a amadurecer e continuemos.
A Inglaterra opõe-se à jogada
francesa e, ainda segundo Telo, Londres faz saber que Lisboa deve requisitar os
navios para serem usados pela Grã-Bretanha e conclui da seguinte forma: «Do
ponto de vista nacional o que desencadeou o processo foi o pedido de ajuda
financeira apresentado por razões
partidárias [destaque da minha autoria] (manter o Governo no poder); do
ponto de vista internacional o que
desencadeou o pedido britânico foi mais uma acção de força da França
[destaque da minha autoria].»
Ora vamos lá desmontar esta história bastante incompleta, cheia de omissões e segundos
sentidos.
Comecemos por Portugal e a França.
Em Portugal, já o disse, mas repito, o Governo Afonso Costa
saído do golpe militar de 14 de Maio de 1915, tinha um objectivo: levar o país à beligerância para se libertar
da pecha internacional de ser um Estado tutelado pela Grã-Bretanha e, por outro
lado, mas consequência dessa tutela, ter lugar à mesa da negociação de paz,
quando ela chegasse, para garantir a integridade territorial em África e a
independência na Península, pois nada garantia e tudo apontava para que até o
fim das hostilidades se fizesse à custa de compensações coloniais para a
Alemanha e, ou, a Bélgica resultantes do esbulho de Angola e Moçambique, pelo
menos.
É desta baliza, deste cenário, que se tem de partir para
perceber a beligerância portuguesa e a necessidade sentida por Afonso Costa de
ser profundamente revolucionário na
condução da política externa, tal como o havia já sido na política interna,
quer abatendo as forças mais reaccionárias e capazes de travar o processo de mudança
de caminho para a modernidade das mentalidades — o clero da Igreja Católica — quer
saneando financeiramente o cancro
orçamental herdado do século XIX.
Ora, o pedido de empréstimo à Inglaterra, mesmo que
tratando-se, como efectivamente se tratou, de um negócio para não ter publicidade, destinava-se a fazer face,
fundamentalmente, a uma série de despesas com o reequipamento do Exército e da
Armada e nada tinha a ver com razões partidárias, que só obtusamente podem ter
lugar na mente de alguém na actualidade presente! Eram razões de Estado!
Razões de Estado, repito, porque é algo que António Telo
parece só perceber se se tratar da Inglaterra! Para ele, as razões de Estado
representadas pelo partido democrático transformam-se em razões partidárias,
exactamente porque põe o enfoque das medidas políticas na defesa dos interesses
ingleses e nunca no do interesse nacional português.
António Telo, na sua enfatuada comunicação, parecendo ter
descoberto alguma coisa de novo, não leva em conta o que John Vincent-Smith
desvendou há quarenta anos! E menos em conta leva o que A. H. de Oliveira
Marques deu a conhecer a todos os historiadores desta época quando publicou as
actas das reuniões do Gabinete ministerial, também em data muito distante, para
não dizer que desconheceu em absoluto o que eu escrevi, em 1990, sobre este
assunto. Para ele, tudo isto é zero! Ou, talvez, História sem fundamento,
porque simplesmente foi feita no sentido da História oficial, que ele não só nega como combate!
Mas que raio disseram estes historiadores? Pois bem,
Vincent-Smith desvenda que o ministro dos negócios estrangeiros britânico condicionou
o terceiro milhão de libras — e não dois como Telo afirma — à
requisição dos navios inimigos recolhidos nos portos portugueses!!
Ora, caros leitores, que nome se pode dar a esta atitude de Sir Edward Grey? Talvez chantagem, não?!
Talvez a prova provada de como Londres fazia política com Lisboa! Mas, mais do
que julgar a atitude do máximo responsável pelo Foreign Office, interessa perceber que:
a) O Governo britânico empurrou
o Governo de Lisboa para a requisição dos navios;
b) O Governo de Lisboa soube movimentar-se muito bem,
aproveitando as necessidades britânicas, para conseguir o seu objectivo
diplomático e nacional;
c) O Governo de Londres só agiu como agiu, porque foi forçado pelo Gabinete de Guerra,
chefiado por Lord Kitchener, a
invocar a Aliança para que se requisitassem os navios.
Não sou eu quem faz esta afirmação! É Vincent-Smith, que
Telo ou desconhece ou despreza propositadamente! Eu limitei-me, em 1990, a juntar as pontas, através de ler com olhos atentos as actas do
Governo Afonso Costa publicadas por Oliveira Marques e disso dei notícia
pública, em livro saído do prelo em 2001 com o título O Fim da Ambiguidade, embora já estivesse à consulta pública, na
Biblioteca Nacional, há dez anos, a minha tese de mestrado em Estratégia!
Voltemos ao texto de António José Telo.
Como destaquei em cima, ele
próprio deixa clara a sua posição ideológica perante este facto: «[…] Portugal entra na guerra apoiado pela
França e, possivelmente, isto representaria o fim da secular Aliança […]»
e, mais à frente, «[…] o que desencadeou
o pedido britânico foi mais uma acção de força da França».
Telo, para além de condenar
a política externa portuguesa, condena
a diplomacia francesa, que se deveria subordinar, segundo o que deixa
transparecer, ao interesse e aos ditames da política inglesa! Telo está a fazer
a História do interesse nacional britânico ou a História da participação de
Portugal na Grande Guerra? Ele retira
a possibilidade da França e Portugal refazerem a sua política externa em função
de interesses que, em dado momento, convergem no mesmo sentido: quem tinha o território invadido pela
Alemanha era a França e quem queria libertar-se de uma aliança que esmagava era
Portugal! António Telo não concede
a Paris e a Lisboa a liberdade de se movimentarem sem ser sob a tutela de
Londres! É que, para a França, todo o auxílio em homens e armamento era
fundamental, mas, para Telo, mais fundamental era cumprirem-se os interesses
britânicos!
O leitor percebe como, com omissões e distorções, se pode
alterar a História? Como o que era lógico, transparente e evidente se
transforma em algo obscuro, mal-intencionado e, até, quase condenável? E
porquê? Porque se comete o erro — esse sim, muito grave — do anacronismo
histórico!
Obrigada Professor por Partilhar Conhecimento.
ResponderExcluirEste seu artigo é bastante importante para o meu conhecimento sobre este assunto. Não conheço o que Telo escreveu, mas percebi o que se passou com esta sua explicação na qual acredito.