sábado, 6 de agosto de 2016

Uma crítica antecipada

António José Telo e Pedro Marquês de Sousa (este, numa associação que não o favorece no plano académico e historiográfico) são os autores do livro significativamente intitulado O CEP: Os militares sacrificados pela má política. E o título é já em si mesmo um programa, poderemos dizer sem receio, anti-histórico, porque adjectiva a política, chamando-lhe má, e aceitando, por conseguinte, que haveria uma boa política que não foi executada e não teria sacrificado o CEP (que, os pouco entendidos em coisas de História e militares, não percebem o que é). O título é, portanto, um erro histórico, indiciando que tudo o mais o será.
E é um erro histórico, porquê? Pela razão simples de conter um julgamento, pois a História não julga! A História relata e explica! Quando se diz má política ultrapassou-se o limite da História para entrar no da propaganda. Em História, a política foi o que foi e, se a qualificamos de , não cometendo o pior dos erros — o anacronismo —, é porque nos estamos a colocar no mesmo plano daqueles que, no tempo, se opunham à política praticada e, assim sendo, não fazemos História, porque fazemos jogo político. E, se se fizer jogo político, não vamos explicar, e muito menos contar, com distanciamento. Vamos explicar, usando dos argumentos que nos colocam como opositores dos acontecimentos e, deste modo, não contamos… influenciamos. É neste princípio que a obra de António José Telo e Marquês de Sousa se desenvolve.

Não cabe aqui e agora fazer uma análise pormenorizada do livro. Daria, e dará, um outro livro que iria, e irá, desmontar toda a suposta arquitectura histórica usada pelos autores.
Este plano vinha já bem de longe! Em 2014, ou talvez antes, estava gizado e mereceu o apoio institucional e financeiro da Comissão Coordenadora Para a Evocação do Centenário da I Guerra Mundial, em cujo projecto se pode ler:
«[…] procura assim uma compreensão geral e abrangente da conflitualidade e da beligerância portuguesa, salientando o que ela tem de original e desenvolvendo um aparelho conceptual próprio para comparar a acção em vários teatros. É um projeto que coloca a tónica justamente naquilo que as análises portuguesas sobre a Grande Guerra normalmente ignoram:
-A ligação entre o político e o militar;
-A inserção da Grande Guerra (1914-1918) na guerra civil intermitente portuguesa (1908-1927), com duas revoluções vitoriosas a nível nacional (1915 e 1917), múltiplas insurreições e pronunciamentos (em todos os anos) e uma guerra civil oficial no fim do conflito global (1919);
-A ligação entre o interno e o externo;
-A inserção de Portugal no sistema internacional» (sublinhados da minha autoria). (Encontra-se este texto no seguinte endereço electrónico: http://www.portugalgrandeguerra.defesa.pt/Paginas/LinhadeInvestiga%C3%A7%C3%A3o.aspx).

Terá sido a ignorância ou a falta de conselho avisado que levou à tomada de decisão, permitindo que visse a luz do dia aquilo que deveria ficar esquecido, porque não tem a característica científica mínima para poder ser divulgada? E, não tem, porque parte de pressupostos falsos. Vejamos, com algum cuidado a justificação do projecto.
«[…] coloca a tónica justamente naquilo que as análises portuguesas sobre a Grande Guerra normalmente ignoram […]».
Isto é falso! É falso, porque, como à frente provarei, eu mesmo fiz trabalhos na vertente que António José Telo diz serem ignorados pelas análises portuguesas. Continuemos.
«-A ligação entre o político e o militar».
Basta uma breve consulta ao meu livro Do Intervencionismo ao Sidonismo: Os dois segmentos da política de guerra na 1.ª República: 1916-1918, editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, em 2010, para se observar, quando enuncio o objectivo da obra, a falsidade da afirmação feita: «Em face do material por nós recolhido seleccionámo-lo para formularmos um problema que representasse uma nova forma de olhar a participação portuguesa na Grande Guerra, em França. Marcámos um objectivo a nós mesmos e é ele quem nos orienta neste trabalho: demonstrar que a participação militar portuguesa na 1.ª Guerra Mundial, em França, sofreu um conjunto de vicissitudes cuja origem se situou dentro e fora do âmbito castrense nacional, gerando dois «tempos», dois «modos» e, até, dois «tipos de comando» diferentes no Corpo Expedicionário Português durante o período que medeia de Janeiro de 1917 a Novembro de 1918. Quer dizer, não nos interessa estudar a vida do CEP desligada do desenrolar da vida política nacional; um estudo exclusivamente limitado ao quotidiano do Corpo Expedicionário na frente de batalha dar-nos-ia uma visão distorcida da verdade. Seria um simples relato de meras ocorrências desgarradas do seu contexto mais profundo. O que se passou em França, na frente de combate, e o que ocorreu em Portugal não se deve dissociar, porque as influências se interpenetraram — naturalmente que o todo teve maior repercussão sobre a parte do que a inversa, ou seja, os acontecimentos em Portugal reflectiram-se com maior incidência no CEP do que os deste no país.
O Corpo Expedicionário foi uma continuação de Portugal em França; estudá-lo somente como um fenómeno de natureza castrense era desenraizá-lo de um contexto muito mais vasto no qual ele, de facto, viveu. Também teremos oportunidade de perceber que a política portuguesa, só pelo facto de se ter constituído aquela grande unidade militar, foi influenciada nos seus alicerces mais profundos, gerando posturas que alteraram comportamentos e atitudes. É esta soldadura que não tem sido estudada em profundidade, nem tem sido compreendida na sua plenitude. Sobre ela vamos fazer incidir os nossos esforços na tentativa de se perceber como, mais do que a beligerância, o CEP ele mesmo, na medida em que foi a parte visível do intervencionismo, foi motor e viatura de um complexo processo militar e político.» (p. 24-25).

É preciso mais? António José Telo quer negar o conteúdo da minha obra e, para fazê-lo, tem de inventar um artifício que traga uma suposta novidade ao estudo da beligerância portuguesa. E qual é esse artifício?
«-A inserção da Grande Guerra (1914-1918) na guerra civil intermitente portuguesa (1908-1927), com duas revoluções vitoriosas a nível nacional (1915 e 1917), múltiplas insurreições e pronunciamentos (em todos os anos) e uma guerra civil oficial no fim do conflito global (1919)».

Em apontamentos anteriores já desmontámos, na generalidade, esta argumentação. Mas será que ela é assim tão inovadora, para além da designação, um tanto surrealista, de guerra civil intermitente?
Vejamos o que nós dissemos na nossa obra já referida:

«A intervenção de Portugal passou a impor-se por várias razões, mas também para não ser um Estado periférico e fora do contexto, sujeito à vontade de todos os que haviam sofrido os horrores do conflito. A tradicional neutralidade novecentista — só alterada para um estatuto de ambiguidade aquando da guerra anglo-boer — tinha de ser abandonada quer por razões de ordem interna quer por motivos de ordem externa, tal como há quase vinte anos demonstrámos, pela primeira vez em Portugal.
Para todos quantos souberam compreender a necessidade da beligerância — uma beligerância no teatro de guerra europeu — foram claras as subtilezas dessa política que pouco tinha a ver com o efectivo perigo alemão. No entanto, para muitos — na época e ainda agora — gerou-se-lhes uma neblina intelectual que os impossibilitou de perceber como a limitação das operações militares aos teatros de guerra africanos ou mesmo a neutralidade era nefasta e inoportuna à política de desenvolvimento e autonomia que os intervencionistas desejavam.
Podemos dizer, sem receio de errar, que a guerra na Europa condicionou a política nacional portuguesa durante os quatro anos que durou; condicionou-a na vertente interna por causa da vertente externa e vice-versa. À instabilidade provocada pelas incursões monárquicas e às várias conspirações que os simpatizantes do Rei desenvolveram entre 1911 e 1919 devem juntar-se as revoluções que a entrada ou não na guerra geraram, pondo republicanos contra republicanos. De facto, a queda do Governo Azevedo Coutinho, em 1914, e a chamada do general Pimenta de Castro para formar Ministério, mais não foi do que um golpe palaciano conduzido pelo Presidente da República, Manuel de Arriaga, para evitar a ultimação dos preparativos de uma mobilização posta em marcha para satisfazer os anseios dos intervencionistas. Do mesmo modo, a revolução de 14 de Maio de 1915, que derrubou o velho general alcandorado a primeiro ditador no regime republicano, teve como objectivo principal abrir as portas da governação aos intervencionistas que, graças a manobras diplomáticas bem conduzidas, viram realizado o seu desejo em Março de 1916. A constituição do Governo de União Sagrada e toda a oposição que se lhe seguiu teve sempre como pano de fundo a beligerância. A tentativa revolucionária de 13 de Dezembro de 1916, conduzida por Machado Santos, fez-se, uma vez mais, para evitar a marcha das tropas para França. Um ano depois, o golpe militar de Sidónio Pais foi ainda, e de novo, uma tentativa de mudar o curso da política de guerra traçada e executada pelos Governos intervencionistas. O próprio assassinato de Sidónio Pais, em Dezembro de 1918, embora posterior ao armistício, julgamos, pode ainda inscrever-se no rescaldo da política belicista.
Se a instabilidade política foi fruto da guerra, tendo-a ou não como pretexto, a instabilidade social foi resultado directo do conflito que assolava a Europa e se estendeu a todo o mundo. Aliás, como à frente se verá, uma das principais características deste grande confronto bélico foi a sua totalização, ou seja, o levar a guerra, ainda que de uma maneira diferente, dos campos de batalha para a retaguarda, afectando de modo indelével as populações civis; a guerra já não era só sentida pelos combatentes e pelos habitantes das áreas onde se desenrolavam os combates, mas por todos, de modo a quebrar o moral daqueles a quem competia bater-se em campanha. Neste conflito, deliberadamente, vão aproveitar-se as facilidades tecnológicas dos contactos rápidos dos combatentes com os civis para desenvolver, talvez pela primeira vez, a propaganda como arma de desmoralização. Vai haver uma interpenetração da frente com a retaguarda de modo a todas as angústias e todas as dificuldades afectarem os que envergavam uniforme e os que o não vestiam. O número de homens empenhados na guerra vai ser de tal monta que, pela primeira vez também, as mulheres são chamadas a trabalhar em fábricas usualmente destinadas a operários do sexo masculino. A desconformidade económica com o desregulamento dos circuitos de compra e venda tornou-se o elemento fundamental para corroer as retaguardas. A guerra submarina, impedindo a livre circulação dos produtos mais essenciais às populações, foi usada pela Alemanha até à exaustão. Nada nem ninguém ficou imune aos efeitos da guerra.
Foi no meio desta situação tendencialmente caótica que os intervencionistas portugueses pressentiram a possibilidade de, ao levar para o conflito bélico o país, entrosar a política nacional com a política dos Aliados, minorando alguns dos efeitos sociais e económicos e conseguindo uma aceitação respeitável no concerto das nações. Por arrastamento viriam os benefícios económicos e, até, culturais.

A beligerância nacional foi, assim, um factor que, conseguindo ou não alcançar no todo ou na parte alguns dos objectivos dos intervencionistas, não só condicionou a condução política durante os quatro anos de guerra — Agosto de 1914 a Novembro de 1918 — como se prolongou, nos seus efeitos, muito para além do final do conflito. Não será exagero se dissermos que o golpe militar de 28 de Maio de 1926 foi, embora já de forma remota, uma sequela da beligerância portuguesa. Com efeito, a entrada na guerra veio dar, no plano interno, uma projecção, visibilidade e importância ao Exército e à Armada que não faziam parte dos planos dos políticos republicanos em 1910. Essa projecção e importância arrastaram-se muito tempo ainda pela ditadura e Estado Novo, julgando nós que se pode considerar já sem relevância significativa quando o ministro Santos Costa executou a reforma do Exército, em 1937.» (p. 18-21).

Quer-se mais para compreender que António José Telo, usando o pano de fundo onde eu trabalhei e expliquei, em grande parte, as razões da beligerância, limitou-se a tentar fazer crer que os anos da 1.ª República foram de guerra civil intermitente — conceito que não compreendo e que nega a luta política ou reduz a luta política a simples momentos eleitorais altamente controlados como os imaginou e pôs em execução Oliveira Salazar e toda a camarilha que o rodeava e sustentava?!



António Telo e Marquês de Sousa acabam mostrando que não são historiadores, mas vendedores de verdades previamente fabricadas, não demonstradas e vestidas com o uniforme da propaganda política.

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