sábado, 2 de abril de 2016

As Forças Armadas Portuguesas e a Grande Guerra


Quando se pretende desqualificar seja o que for, tudo serve para o fazer. Basta que se acentuem os aspectos negativos e se omitam os positivos, não se mencionem os lados capazes de atenuar a negritude de um quadro que se pretende de breu.
É esta a posição do historiador António José Telo ao abordar aquele que designou por «6.º Erro» na comunicação de encerramento do XXIII colóquio de História Militar, em 2014, dando-lhe o título «Portugal tem umas Forças Armadas semelhantes às outras».
Começa logo por afirmar: «Um dos maiores erros da visão tradicional é a de tratar a instituição militar nacional como sendo semelhante à dos restantes beligerantes, distinguindo-se deles somente pela dimensão.»

Não sei onde foi desencantar esta visão tradicional! O general Luís Augusto Ferreira Martins, o primeiro, na ordem cronológica, dos historiadores da Grande Guerra, não a dá, e ele sabia do que falava, pois foi o subchefe do estado-maior do Corpo Expedicionário Português (CEP) em França. Se António José Telo tivesse passado uma vista de olhos pelos jornais portugueses, em especial de Lisboa, publicados logo após o início do conflito, teria topado com algumas polémicas entre oficiais do Exército, tendo como base este tema. Toda a gente sabia que Portugal estava dotado de um Exército mal preparado e mal equipado. Mas isso não era erro da República, ainda que Telo lhe queira transferir responsabilidades, exaltando a reforma militar do reinado de D. Carlos.

Para que os leitores se possam situar, torna-se necessário esclarecer o que era o Exército nos últimos tempos da Monarquia.
Vivendo uma longa paz na Europa, os Governos de Portugal fizeram o que sempre fazem: reduziram ao máximo as despesas com as Forças Armadas até as tornarem numa organização quase inútil, servindo para impressionar internamente pela força e pelo brilho das fardas em ocasiões de festejos. O modelo de recrutamento levava a que só os pobres, desvalidos e analfabetos cumprissem serviço militar obrigatório. A oficialidade dividia-se entre aqueles que só pretendiam um emprego (mal) remunerado e uns poucos que aspiravam seguir uma carreira de serviço à Pátria. E nem se julgue que todos aqueles oficiais que estiveram nas colónias africanas, depois de 1885 — Conferência de Berlim e dever de ocupação efectiva —, corresponderam aos que o fizeram por desvelo castrense! Ofereciam-se para o serviço colonial, porque, de acordo com o preceito da época, uma vez na colónia, eram graduados no posto imediatamente a seguir e, assim, passavam a auferir uns cobres adicionais.
O serviço militar era desempenhado pelas praças — convém recordar que os sargentos, então, eram praças de pré — em regime de quase profissionalismo, pois poderiam prolongar a sua permanência nas fileiras através de sucessivos contratos.
A valia táctica deste Exército só era grande em África, porque tinha de se defrontar com hordas de combatentes indígenas muito mal armadas. Foi à superioridade em armamento de fraquíssima qualidade que se ficaram a dever as retumbantes vitórias tão apregoadas na historiografia do Estado Novo. A verdade nunca foi contada! E continua a ser nessa falta de verdade que António José Telo faz assentar toda a sua argumentação eivada de omissões.
Vejamo-las, pois.

Quer partir de um pressuposto: os políticos republicanos, em especial a ala mais radical, tinham em mente a destruição da valia do Exército monárquico levada a cabo de duas formas: uma, a partir de um núcleo de oficiais identificados com o radicalismo, reformando todo o aparelho militar e dando-lhe uma eficácia nacional através da obrigação de prestação de serviço nas fileiras, abandonando-se o modelo semi-permanente e adoptando a conscrição nacional por tempo reduzido a fim de libertar a mão-de-obra para as tarefas úteis; outra, partidarizando politicamente as Forças Armadas e infiltrando-as com civis armados pertencentes a organizações revolucionárias. No essencial, é assim que se pode sintetizar a tese de António Telo.

É absolutamente verdade que foi feita uma reforma do Exército em 1911, mas está muito longe de continuar a ser verdade que ela se destinasse a «[…] neutralizar o potencial perigo do corpo de oficiais.» Só partindo de um pressuposto ignorante, falso ou carregado de preconceitos históricos e políticos se pode admitir a afirmação anterior. Nunca o Exército do final da Monarquia foi táctica ou estrategicamente valioso, a não ser nas condições africanas que referi. Só se aceita o contrário se se acreditar na propaganda do Estado Novo feita à volta das campanhas de pacificação. Houve rasgos de coragem individual, mas, para além de pontuais, deveram-se a circunstâncias específicas mal contadas. E, para aferir do que afirmo, basta ler, por exemplo, António Enes, que nos deixa o retrato exacto das incapacidades materiais e financeiras de toda a ordem para poder levar a cabo a tão badalada epopeia de Mouzinho de Albuquerque!
A reforma de 1911 visava, como atrás deixei dito, levar ao cumprimento do serviço militar, sem excepções, todos os jovens em idade do cumprimento das obrigações de cidadania, mas reduzindo a sua permanência nas fileiras ao tempo mínimo para aprenderem a manobra táctica essencial; depois, durante sete anos, na última quinzena de Setembro, todos os disponíveis eram chamados ao cumprimento das designadas escolas de repetição onde se refrescavam os conhecimentos aprendidos nas respectivas recrutas. Claro que, nestas circunstâncias, e como era lógico, a imensa e inútil quantidade de oficiais do quadro permanente iria, a prazo, perder significado, restando somente os essenciais para fazerem arrancar a mobilização e os programas de instrução. Ora, aqui está, em poucas palavras, a reforma que António Telo, em congeminações conspiratórias, condena por se destinar a destruir o inútil Exército herdado da Monarquia.
Quanto à infiltração de revolucionários civis nos quartéis, em determinados momentos de perigo para o novo regime, ela não assume as proporções imaginadas por Telo, todavia, existe em consequência da lógica revolucionária da implantação da República: deveu-se mais à acção dos civis carbonários do que à dos militares e oficiais. Claro que, para António Telo desejoso de condenar em vez de explicar, a partidarização do corpo de oficiais se fica a dever a um movimento de reacção às reformas revolucionárias da República e não, como me parece lógico e evidente, à frustração causada pelas mudanças republicanas que iriam pôr a trabalhar e a ganhar treino efectivo uma cambada de inúteis cabides de farda!

Nunca se acreditou que o Exército da República tivesse as capacidades militares dos seus congéneres europeus. No Arquivo Histórico Militar há abundante informação sobre as carências entre 1914 e 1917. Nunca se acreditou, no seio dos políticos intervencionistas, que o contributo militar português fosse de molde a ter peso na condução da guerra na Europa! Só alguém completamente fora da realidade poderia acreditar em tal. O importante — e só por um acto de declarada inteligência se pode compreender este argumento — não eram vitórias militares; o importante era estar no teatro de operações da Europa para garantir uma acção diplomática presente, na época, e, futura, no final do conflito! Quem não percebe isto não percebe a razão da beligerância nacional! Pelos vistos, o historiador António José Telo não percebe e, para além de não perceber as razões da época, anda a fazer interpretações que estão claramente enfeudadas à perspectiva reaccionária de então. Assim ele não explica o que se passou, mas antes o que se deveria ter passado. E História não é isso!

Um comentário:

  1. Aprendi um pouco mais. Aliás, aprendo sempre mais alguma coisa quando o leio. Obrigado!

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