Quando se pretende desqualificar seja o que for, tudo serve
para o fazer. Basta que se acentuem os aspectos negativos e se omitam os
positivos, não se mencionem os lados capazes de atenuar a negritude de um
quadro que se pretende de breu.
É esta a posição do historiador António José Telo ao abordar
aquele que designou por «6.º Erro» na comunicação de encerramento do XXIII
colóquio de História Militar, em 2014, dando-lhe o título «Portugal tem umas
Forças Armadas semelhantes às outras».
Começa logo por afirmar: «Um dos maiores erros da visão
tradicional é a de tratar a instituição militar nacional como sendo semelhante
à dos restantes beligerantes, distinguindo-se deles somente pela dimensão.»
Não sei onde foi desencantar esta visão tradicional! O general Luís Augusto Ferreira Martins, o
primeiro, na ordem cronológica, dos historiadores da Grande Guerra, não a dá, e
ele sabia do que falava, pois foi o subchefe do estado-maior do Corpo
Expedicionário Português (CEP) em França. Se António José Telo tivesse passado
uma vista de olhos pelos jornais portugueses, em especial de Lisboa, publicados
logo após o início do conflito, teria topado com algumas polémicas entre
oficiais do Exército, tendo como base este tema. Toda a gente sabia que Portugal
estava dotado de um Exército mal preparado e mal equipado. Mas isso não era
erro da República, ainda que Telo lhe queira transferir responsabilidades,
exaltando a reforma militar do reinado de D. Carlos.
Para que os leitores se possam situar, torna-se necessário
esclarecer o que era o Exército nos últimos tempos da Monarquia.
Vivendo uma longa paz na Europa, os Governos de Portugal
fizeram o que sempre fazem: reduziram ao máximo as despesas com as Forças
Armadas até as tornarem numa organização quase inútil, servindo para
impressionar internamente pela força e pelo brilho das fardas em ocasiões de
festejos. O modelo de recrutamento levava a que só os pobres, desvalidos e
analfabetos cumprissem serviço militar obrigatório. A oficialidade dividia-se
entre aqueles que só pretendiam um emprego (mal) remunerado e uns poucos que
aspiravam seguir uma carreira de serviço à Pátria. E nem se julgue que todos aqueles
oficiais que estiveram nas colónias africanas, depois de 1885 — Conferência de
Berlim e dever de ocupação efectiva —, corresponderam aos que o fizeram por
desvelo castrense! Ofereciam-se para o serviço colonial, porque, de acordo com
o preceito da época, uma vez na colónia, eram graduados no posto imediatamente
a seguir e, assim, passavam a auferir uns cobres adicionais.
O serviço militar era desempenhado pelas praças — convém
recordar que os sargentos, então, eram praças de pré — em regime de quase
profissionalismo, pois poderiam prolongar a sua permanência nas fileiras através
de sucessivos contratos.
A valia táctica deste Exército só era grande em África, porque tinha de se defrontar com hordas de
combatentes indígenas muito mal armadas. Foi à superioridade em armamento de
fraquíssima qualidade que se ficaram a dever as retumbantes vitórias tão apregoadas na historiografia do Estado
Novo. A verdade nunca foi contada! E continua a ser nessa falta de verdade que
António José Telo faz assentar toda a sua argumentação eivada de omissões.
Vejamo-las, pois.
Quer partir de um pressuposto: os políticos republicanos, em
especial a ala mais radical, tinham em mente a destruição da valia do Exército
monárquico levada a cabo de duas formas: uma, a partir de um núcleo de oficiais
identificados com o radicalismo, reformando todo o aparelho militar e dando-lhe
uma eficácia nacional através da obrigação de prestação de serviço nas fileiras,
abandonando-se o modelo semi-permanente e adoptando a conscrição nacional por
tempo reduzido a fim de libertar a mão-de-obra para as tarefas úteis; outra,
partidarizando politicamente as Forças Armadas e infiltrando-as com civis
armados pertencentes a organizações revolucionárias. No essencial, é assim que
se pode sintetizar a tese de António Telo.
É absolutamente verdade que foi feita uma reforma do
Exército em 1911, mas está muito longe de continuar a ser verdade que ela se
destinasse a «[…] neutralizar o potencial perigo do corpo de oficiais.» Só
partindo de um pressuposto ignorante, falso ou carregado de preconceitos
históricos e políticos se pode admitir a afirmação anterior. Nunca o Exército
do final da Monarquia foi táctica ou estrategicamente valioso, a não ser nas
condições africanas que referi. Só se aceita o contrário se se acreditar na
propaganda do Estado Novo feita à volta das campanhas de pacificação. Houve rasgos de coragem individual, mas, para além de
pontuais, deveram-se a circunstâncias específicas mal contadas. E, para aferir
do que afirmo, basta ler, por exemplo, António Enes, que nos deixa o retrato
exacto das incapacidades materiais e financeiras de toda a ordem para poder
levar a cabo a tão badalada epopeia
de Mouzinho de Albuquerque!
A reforma de 1911 visava, como atrás deixei dito, levar ao
cumprimento do serviço militar, sem excepções, todos os jovens em idade do
cumprimento das obrigações de cidadania, mas reduzindo a sua permanência nas
fileiras ao tempo mínimo para aprenderem a manobra táctica essencial; depois,
durante sete anos, na última quinzena de Setembro, todos os disponíveis eram
chamados ao cumprimento das designadas escolas
de repetição onde se refrescavam os conhecimentos aprendidos nas
respectivas recrutas. Claro que, nestas circunstâncias, e como era lógico, a imensa
e inútil quantidade de oficiais do quadro permanente iria, a prazo, perder
significado, restando somente os essenciais para fazerem arrancar a mobilização e os programas de instrução. Ora, aqui está,
em poucas palavras, a reforma que António Telo, em congeminações
conspiratórias, condena por se destinar a destruir o inútil Exército herdado da
Monarquia.
Quanto à infiltração de revolucionários civis nos quartéis,
em determinados momentos de perigo para o novo regime, ela não assume as
proporções imaginadas por Telo, todavia, existe em consequência da lógica
revolucionária da implantação da República: deveu-se mais à acção dos civis
carbonários do que à dos militares e oficiais. Claro que, para António Telo
desejoso de condenar em vez de explicar, a partidarização do corpo de oficiais
se fica a dever a um movimento de reacção às reformas revolucionárias da
República e não, como me parece lógico e evidente, à frustração causada pelas
mudanças republicanas que iriam pôr a trabalhar e a ganhar treino efectivo uma cambada
de inúteis cabides de farda!
Nunca se acreditou que o Exército da República tivesse as capacidades
militares dos seus congéneres europeus. No Arquivo Histórico Militar há
abundante informação sobre as carências entre 1914 e 1917. Nunca se acreditou,
no seio dos políticos intervencionistas, que o contributo militar português
fosse de molde a ter peso na condução da guerra na Europa! Só alguém
completamente fora da realidade poderia acreditar em tal. O importante — e só
por um acto de declarada inteligência se pode compreender este argumento — não
eram vitórias militares; o importante
era estar no teatro de operações da Europa para garantir uma acção diplomática
presente, na época, e, futura, no final do conflito! Quem não percebe isto
não percebe a razão da beligerância nacional! Pelos vistos, o historiador
António José Telo não percebe e, para além de não perceber as razões da época,
anda a fazer interpretações que estão claramente enfeudadas à perspectiva reaccionária
de então. Assim ele não explica o que se passou, mas antes o que se deveria ter
passado. E História não é isso!
Aprendi um pouco mais. Aliás, aprendo sempre mais alguma coisa quando o leio. Obrigado!
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