Embora seja vulgar referir os acontecimentos de 5 de Outubro de 1910, tal
como os que imediatamente os antecederam e precederam por Revolução, o certo, quanto a nós, é que somente se limitaram a
provocar uma mudança de regime. Claro que, se por revolução se entender isso mesmo — a
mudança de regime —, estaremos, então, perante tal acontecimento, por se ter verificado
a modificação das instituições monárquicas em instituições republicanas, mas
se compreender que não basta mudar as instituições para que haja uma revolução, então ela, efectivamente, só
aconteceu quando, através de legislação conveniente, se operaram as transformações
que deram cunho republicano à sociedade. E, neste caso, a revolução deu-se em momentos diferentes, sendo que, o primeiro e
mais notável, foi o Governo Provisório da República.
Foi durante a fase final do ano de 1910 e grande parte dos meses de 1911
que se cortaram as amarras à
sociedade monárquica e se lançaram os alicerces do edifício republicano. Para
compreender este facto e aceitá-lo como verdadeiro basta pensar no leque
legislativo do Governo Provisório! Em poucos meses lançaram-se princípios que
se pretendiam ver frutificar na continuidade da República, estabelecendo
mudanças que definiriam um Portugal de
outro tipo.
No bojo do Partido Republicano Português (PRP), todavia, cresciam sensibilidades que, dizendo-se
não monárquicas, continuavam a transportar incapacidades
atávicas próprias da idiossincrasia nacional, as quais tinham, necessariamente,
de entrar em confronto com a ruptura
republicana. Entravam porque, na essência, eram conservadoras, embora,
dizendo-se republicanas. E o que era serem conservadoras? Nada mais do que
acharem excessiva a ruptura
republicana. Ou seja, limitarem-se a lavar
a cara à Monarquia com a água e o
sabão republicanos, não cortando
tradições nem hábitos que se julgavam portugueses e nacionais, mas que,
realmente, constituíam obstáculos ao entendimento do progresso e da mudança
que, na Europa, faziam já parte do quotidiano dos povos. Era uma espécie de República à portuguesa.
O momento de clivagem entre republicanos, deixando a claro as tendências sensitivas que coexistiam dentro do PRP,
correspondeu à eleição do primeiro Presidente da República. A ala conservadora,
minoritária, seguiu Brito Camacho na formação do partido unionista, a ala moderada seguiu António José de Almeida
quando este se separa do velho
Partido Republicano para fundar o partido evolucionista; restaram, dentro do
aparelho partidário republicano do tempo da Monarquia, os radicais chefiados
por Afonso Costa. Este era, efectivamente, a alma da República moderna apostada na revolução. Mas os anteriormente citados chefes republicanos, ainda
em 1911, haviam conseguido fazer eleger para Chefe de Estado o histórico e
moderado Manuel de Arriaga.
De acordo com a doutrina expressa no Art.º 31.º da Constituição Política,
o Presidente da República era o chefe do Poder Executivo, já que o exercia com
os ministros (Art.º 36.º). Ora, como chefe do Poder Executivo, competia-lhe a
função de convocar, para formar Governo, a personalidade que achasse mais
conveniente (n.º 1.º do Art.º 47.º). Contudo, por força do disposto no Art.º
49.º, o Presidente da República era refém dos ministros, pois todos os seus
actos «[…] deverão ser referendados, pelo menos, pelo ministro competente. Não
o sendo, são nulos de pleno direito, não poderão ter execução e ninguém lhes
deverá obediência.» Curiosamente, o Art.º 53.º estabelecia que, «[…] de entre
os ministros, um deles, também nomeado pelo Presidente, será presidente do
Ministério e responderá não só pelos negócios da sua pasta, mas também pelos da
política geral.» Como se depreende, o Poder Executivo tinha uma bipartição de
responsabilidades e de vigilâncias mútuas, acabando, em última instância por
estar uma delas — o Ministério — sujeita à crítica constante do Parlamento,
sendo que, indirectamente, o Poder Legislativo exercia crítica, também, sobre o
Presidente da República que por ele havia sido eleito (Art.º 38.º). A
Constituição evidenciava, assim, a aversão republicana ao Poder Moderador do rei, estabelecido na Carta Constitucional, mas
acabava gerando condições específicas de instabilidade, como se verá de
seguida.
Manuel de Arriaga, cumprindo a Constituição, ao contrário do que é norma
na actualidade nacional, não estava obrigado pelos resultados eleitorais do
Congresso da República (junção da Câmara de Deputados e da de Senadores) a
chamar para presidir ao Ministério o líder do agrupamento político mais votado.
E é deste modo que, logo de início, se instituiu a possibilidade de gerar
instabilidade governativa, pois o Parlamento, desvinculado da escolha do
presidente do Ministério, tinha plena liberdade para contestar a política
executada, restando ao Presidente da República a obrigação de nomear outra
personalidade que formasse Governo com condição de agrado junto das Câmaras. Assim se percebe que, podendo ser elemento de estabilização política, o
Presidente da República, também podia ser elemento de instabilidade.
Ora, estando desfeito o PRP inicial, dividido em três blocos de
sensibilidades diferentes, bastava a Manuel de Arriaga — um político
tendencialmente conservador — não chamar Afonso Costa para presidir ao Gabinete
para, deste modo, travar a continuidade da revolução
que tinha tido início no Governo Provisório. Eis porque, só quando depois de
sucessivos fracassos governativos, em 1913, aquele político foi finalmente
convocado para formar Ministério — gozando, já então, de maioria parlamentar — dando-se,
assim, continuidade à revolução
republicana a partir da reforma fiscal, que tornou possível o primeiro
superavit orçamental desde o período liberal da Monarquia e gerou as condições
para se elaborar um orçamento com previsão de saldo positivo.
Foi necessário ocorrer o golpe militar de 14 de Maio de 1915 para que se
estabelecesse uma evidente sintonia entre a Presidência da República — então
assumida por Teófilo Braga e, depois, por Bernardino Machado — e o partido democrático, designação dada à
ala republicana de Afonso Costa, para que fosse possível haver um novo período
de revolução republicana, este agora,
no plano da política internacional, e que redundou, na prática, na beligerância
portuguesa na Grande Guerra por forma a provocar a modificação do entendimento
da relação luso-britânica nas chancelarias da Europa e, até, das Américas.
O afastamento voluntário de Afonso Costa da cena política nacional,
depois do episódio governativo de Sidónio Pais e de alcançada a paz, concluiu o
ciclo da revolução republicana,
deixando o país entregue às tendências moderadas ou conservadoras e, quando
radicais, já sem a perspectiva de mudança que, aliás, era quase impossível na
Europa do pós Grande Guerra.
Compreender a beligerância e a participação de Portugal na Grande Guerra
tem sido um dos nossos mais imperiosos objectivos para que se perceba a última
fase da revolução republicana
iniciada em 1910/11 com o Governo Provisório onde pontificou Afonso Costa como
grande motor da mudança de que Portugal carecia.
Não desistimos.
Mais uma interessante e útil reflexão sobre a transição da Monarquia para a República, com a I GM à vista, que vou ter o prazer de ver mais desenvolvida depois de amanhã na Associação dos antigos alunos da nossa casa Mãe, o IPE.
ResponderExcluirUm forte abraço.
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