domingo, 31 de maio de 2015

Aliados?!


Já abordei, ainda que em voo rápido de palavras a rasgar o passado, a tentativa diplomática anglo-germânica de, em 1898, partilhar as mais importantes colónias portuguesas entre si. O fundamento encontrava justificação na necessidade de conter o crescimento da marinha de guerra alemã de forma a não rivalizar com a britânica. Salvou Portugal de ser esbulhado, não só a França, que se opôs a tal negócio, mas também, a eclosão da guerra anglo-bóer, na África do Sul.
Realmente, Lisboa havia firmado um acordo diplomático com a República do Transval, comprometendo-se a permitir que pelo porto de Lourenço Marques (hoje Maputo) fosse possível a passagem de todos os produtos de que aquele Estado carecesse, incluindo armamento. O conflito inglês com o Transval colocou Portugal numa posição incómoda e impossível de manter, pois a Alemanha apoiava o Estado bóer e, a haver a colaboração prevista no acordo, a fractura diplomática com a Inglaterra ficaria iminente com todos os riscos daí advenientes, sendo que a ocupação do sul de Moçambique por tropas britânicas poderia perfilar-se no horizonte de hipóteses a considerar por Lisboa sem, contudo, se prever que Berlim estivesse disposto a assumir mais do que apoios meramente diplomáticos, como aconteceu em relação ao Transval. Assim, o entendimento anglo-germânico de 1898, poderia servir para Londres forçar Lisboa a aceitar condições internacionais sobre Lourenço Marques que iam ao arrepio da boa convivência com o Transval. E foi isso que aconteceu!
Em troca de Londres reafirmar os termos da aliança anglo-lusa e, em especial, de oferecer a sua marinha de guerra para protecção das colónias portugueses — facto que, na prática, anulava os efeitos do entendimento anglo-germânico —, em 1899, exigiu que Lisboa desse a conhecer que Portugal colaborava com a Inglaterra, ficando neutral perante a República do Transval. Era a inversão da lógica antecedente. No plano internacional aprofundava-se a imagem de uma subordinação total do Governo português às vontades britânicas. A asa tutelar da Grã-Bretanha sobre Portugal aumentou significativamente ao ponto de reduzir o estatuto soberano à condição de Estado tutelado.
Nem por se tratar de um conflito na África austral deixou de ser entendida, na Europa, a posição de Portugal como a de mero executante dos interesses britânicos, mesmo que houvesse convergência de interesses e de vontades entre ambos. Aos olhos das grandes potências europeias — fossem militares ou económicas — Portugal era coutada onde só a Grã-Bretanha caçava. E aquilo que era sabido nas chancelarias europeias era, também, sentido pelas elites mais esclarecidas do pensamento nacional português. E este sentimento foi canalizado para um de dois caminhos: ou aceitar que, por incapacidade, a Monarquia, estando politicamente falida, teria de amarrar firmemente os seus destinos ao motor britânico, aceitando o que parecia inevitável; ou romper com o regime e aceitar a proposta, um tanto messiânica e sebastianista, dos republicanos. Deste modo, não se pode limitar somente às razões de política interna a taumatúrgica solução trazida por uma República que se tinha de proclamar tão rápido quanto fosse possível — e aqui entrava, também, a aceitação prévia da Grã-Bretanha que, no mínimo, teria de dar garantias de neutralidade se os republicanos dessem garantias de continuidade na aceitação de uma tutela que satisfazia, acima de tudo, os interesses britânicos — para, especialmente, no plano interno mostrar que as moscas mudavam, sem nada prometer quanto a outras mudanças no plano externo.

À luz de uma verticalidade de princípios políticos, que a prática de um capitalismo absorvente e expansionista ainda não havia ganhado espaço e lugar no quotidiano português, imaginados como os ideais para o governo dos povos, a relação existente entre Portugal e a Inglaterra era tida, entre o povo e as elites contestatárias, como pérfida, porque a Aliança não se mostrava pura e desinteressada. E o que ditava este sentimento era um desfasamento na identificação das armadilhas que, no século XIX, na Grã-Bretanha, se tinham aperfeiçoado através da relação íntima entre os interesses do capitalismo em expansão e os interesses políticos de um poder estatal, de há muito, com vocação imperial. Felizmente, os republicanos, ou uma grande maioria deles, — representados por uma geração de gente com idades médias compreendidas entre os quarenta e os cinquenta anos —, que depois da mudança do regime assumiram as rédeas da governação, se aperceberam da importância da manha na condução da política moderna, pois puseram em dúvida a existência de uma Aliança desinteressada, passando a ter receio evidente das jogadas da Velha Aliada. E em boa hora assim procederam, porque em Londres, no ano de 1912, deu-se inicio a novas conversações para a partilha das colónias portuguesas com a Alemanha. Isso alertou, pelo menos uma ala dos republicanos, para a necessidade de frustrar os intentos ingleses através de levar Londres a invocar a Aliança quando a guerra, há muito esperada e pressentida, estalou na Europa. Iniciava-se uma política diplomática moderna e, em certa medida, revolucionária.

sábado, 9 de maio de 2015

Compreender a Revolução


Embora seja vulgar referir os acontecimentos de 5 de Outubro de 1910, tal como os que imediatamente os antecederam e precederam por Revolução, o certo, quanto a nós, é que somente se limitaram a provocar uma mudança de regime. Claro que, se por revolução se entender isso mesmo — a mudança de regime —, estaremos, então, perante tal acontecimento, por se ter verificado a modificação das instituições monárquicas em instituições republicanas, mas se compreender que não basta mudar as instituições para que haja uma revolução, então ela, efectivamente, só aconteceu quando, através de legislação conveniente, se operaram as transformações que deram cunho republicano à sociedade. E, neste caso, a revolução deu-se em momentos diferentes, sendo que, o primeiro e mais notável, foi o Governo Provisório da República.
Foi durante a fase final do ano de 1910 e grande parte dos meses de 1911 que se cortaram as amarras à sociedade monárquica e se lançaram os alicerces do edifício republicano. Para compreender este facto e aceitá-lo como verdadeiro basta pensar no leque legislativo do Governo Provisório! Em poucos meses lançaram-se princípios que se pretendiam ver frutificar na continuidade da República, estabelecendo mudanças que definiriam um Portugal de outro tipo.

No bojo do Partido Republicano Português (PRP), todavia, cresciam sensibilidades que, dizendo-se não monárquicas, continuavam a transportar incapacidades atávicas próprias da idiossincrasia nacional, as quais tinham, necessariamente, de entrar em confronto com a ruptura republicana. Entravam porque, na essência, eram conservadoras, embora, dizendo-se republicanas. E o que era serem conservadoras? Nada mais do que acharem excessiva a ruptura republicana. Ou seja, limitarem-se a lavar a cara à Monarquia com a água e o sabão republicanos, não cortando tradições nem hábitos que se julgavam portugueses e nacionais, mas que, realmente, constituíam obstáculos ao entendimento do progresso e da mudança que, na Europa, faziam já parte do quotidiano dos povos. Era uma espécie de República à portuguesa.
O momento de clivagem entre republicanos, deixando a claro as tendências sensitivas que coexistiam dentro do PRP, correspondeu à eleição do primeiro Presidente da República. A ala conservadora, minoritária, seguiu Brito Camacho na formação do partido unionista, a ala moderada seguiu António José de Almeida quando este se separa do velho Partido Republicano para fundar o partido evolucionista; restaram, dentro do aparelho partidário republicano do tempo da Monarquia, os radicais chefiados por Afonso Costa. Este era, efectivamente, a alma da República moderna apostada na revolução. Mas os anteriormente citados chefes republicanos, ainda em 1911, haviam conseguido fazer eleger para Chefe de Estado o histórico e moderado Manuel de Arriaga.

De acordo com a doutrina expressa no Art.º 31.º da Constituição Política, o Presidente da República era o chefe do Poder Executivo, já que o exercia com os ministros (Art.º 36.º). Ora, como chefe do Poder Executivo, competia-lhe a função de convocar, para formar Governo, a personalidade que achasse mais conveniente (n.º 1.º do Art.º 47.º). Contudo, por força do disposto no Art.º 49.º, o Presidente da República era refém dos ministros, pois todos os seus actos «[…] deverão ser referendados, pelo menos, pelo ministro competente. Não o sendo, são nulos de pleno direito, não poderão ter execução e ninguém lhes deverá obediência.» Curiosamente, o Art.º 53.º estabelecia que, «[…] de entre os ministros, um deles, também nomeado pelo Presidente, será presidente do Ministério e responderá não só pelos negócios da sua pasta, mas também pelos da política geral.» Como se depreende, o Poder Executivo tinha uma bipartição de responsabilidades e de vigilâncias mútuas, acabando, em última instância por estar uma delas — o Ministério — sujeita à crítica constante do Parlamento, sendo que, indirectamente, o Poder Legislativo exercia crítica, também, sobre o Presidente da República que por ele havia sido eleito (Art.º 38.º). A Constituição evidenciava, assim, a aversão republicana ao Poder Moderador do rei, estabelecido na Carta Constitucional, mas acabava gerando condições específicas de instabilidade, como se verá de seguida.

Manuel de Arriaga, cumprindo a Constituição, ao contrário do que é norma na actualidade nacional, não estava obrigado pelos resultados eleitorais do Congresso da República (junção da Câmara de Deputados e da de Senadores) a chamar para presidir ao Ministério o líder do agrupamento político mais votado. E é deste modo que, logo de início, se instituiu a possibilidade de gerar instabilidade governativa, pois o Parlamento, desvinculado da escolha do presidente do Ministério, tinha plena liberdade para contestar a política executada, restando ao Presidente da República a obrigação de nomear outra personalidade que formasse Governo com condição de agrado junto das Câmaras. Assim se percebe que, podendo ser elemento de estabilização política, o Presidente da República, também podia ser elemento de instabilidade.

Ora, estando desfeito o PRP inicial, dividido em três blocos de sensibilidades diferentes, bastava a Manuel de Arriaga — um político tendencialmente conservador — não chamar Afonso Costa para presidir ao Gabinete para, deste modo, travar a continuidade da revolução que tinha tido início no Governo Provisório. Eis porque, só quando depois de sucessivos fracassos governativos, em 1913, aquele político foi finalmente convocado para formar Ministério — gozando, já então, de maioria parlamentar — dando-se, assim, continuidade à revolução republicana a partir da reforma fiscal, que tornou possível o primeiro superavit orçamental desde o período liberal da Monarquia e gerou as condições para se elaborar um orçamento com previsão de saldo positivo.

Foi necessário ocorrer o golpe militar de 14 de Maio de 1915 para que se estabelecesse uma evidente sintonia entre a Presidência da República — então assumida por Teófilo Braga e, depois, por Bernardino Machado — e o partido democrático, designação dada à ala republicana de Afonso Costa, para que fosse possível haver um novo período de revolução republicana, este agora, no plano da política internacional, e que redundou, na prática, na beligerância portuguesa na Grande Guerra por forma a provocar a modificação do entendimento da relação luso-britânica nas chancelarias da Europa e, até, das Américas.
O afastamento voluntário de Afonso Costa da cena política nacional, depois do episódio governativo de Sidónio Pais e de alcançada a paz, concluiu o ciclo da revolução republicana, deixando o país entregue às tendências moderadas ou conservadoras e, quando radicais, já sem a perspectiva de mudança que, aliás, era quase impossível na Europa do pós Grande Guerra.

Compreender a beligerância e a participação de Portugal na Grande Guerra tem sido um dos nossos mais imperiosos objectivos para que se perceba a última fase da revolução republicana iniciada em 1910/11 com o Governo Provisório onde pontificou Afonso Costa como grande motor da mudança de que Portugal carecia.

Não desistimos.